A erosão da democracia no Brasil
Natal, RN 29 de mar 2024

A erosão da democracia no Brasil

3 de junho de 2021
A erosão da democracia no Brasil

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Dois relatórios internacionais publicados recentemente sobre a democracia no mundo revelaram que os espaços democráticos têm encolhido em alguns países e que estaria havendo um colapso da democracia, ou o que tem sido chamado de uma recessão democrática.

O Instituto Variações da Democracia (V-Dem), da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, que tem um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, fez uma extensa pesquisa e publicou em março de 2021 um documento com dados relativos a 202 países. Para isso foram elaborados 450 indicadores de democracia estabelecendo índices que variam de 0 a 1, no qual 0 representa um regime ditatorial e 1 uma democracia plena.

Contando com a contribuição de aproximadamente 3,5 mil pesquisadores (85% vinculados às universidades de vários países), seus indicadores vão desde a realização de eleições livres (portanto sem as inúmeras possibilidades de manipulações, mentiras etc.) e outros fatores como independência dos poderes, participação nos processos decisórios, liberdades civis (associação, imprensa) etc.

Também são consultados documentos oficiais e a Constituição dos países para analisar o que dizem as Constituições e o que fazem os governos.

De acordo com o V-Dem, entre 2010 e 2020 houve o que chamou de “deterioração da democracia” e que o Brasil, Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia registraram as maiores quedas nos índices de democracia, sendo o Brasil a partir de 2016.

Segundo o relatório, em 2020 o índice do Brasil foi 0,51 e com isso, foi o quarto país que mais se afastou da democracia (os outros três foram Polônia, Turquia e Hungria que, na classificação, se tornaram oficialmente autocracias). Entre os dez países, além desses quatro, estão a Sérvia, Benin, Índia, República de Maurício, Bolívia e Tailândia. (https://www.v-dem.net/en/#).(no caso da Bolívia, especialmente entre a renúncia de Evo Morales em 10 de novembro de 2019 e a posse do seu sucessor, em 8 de novembro de 2020, assumiu um governo ilegítimo de direita, derrotado nas eleições).

O diagnóstico é de que existe hoje o que chama de uma terceira onda global autocrática: a primeira ocorreu entre os anos 1920-1940 (ascensão do nazi-fascismo e início de ditaduras em Portugal e Espanha etc.), a segunda entre o começo dos anos 1960 e o final dos anos 1970(que inclui as várias ditaduras militares na América Latina, incluindo o Brasil (1964-1985) e uma terceira onda a partir de 1994 e que se amplia a partir de 2016. Em 2010, por exemplo, 48% da população mundial viviam sob regimes considerados não democráticos e este índice subiu para 68% em 2020.

No grupo do G-20 além de Brasil e Turquia, houve também uma queda nos índices de democracia na Índia que passou a ser classificada como “autocracia com eleições”.

A análise é a de que esses países, apesar de suas diferenças, seguem um padrão comum por parte dos seus governos: ataques à mídia, repressão e perseguições aos contestadores, incentivo à polarização política na sociedade, uso de informações falsas (não apenas em períodos eleitorais) e sistematicamente atentam contra as instituições formais (parlamento, judiciário etc.,) e, portanto, contra a democracia.

De acordo com o índice de qualidade da democracia liberal do V-Dem, o Brasil deixou o grupo das 30 democracias mais sólidas do mundo no qual figurava no início da década e em 2020 ocupava a 56ª posição.

Outro relatório publicado em 2021 sobre democracia no mundo foi do Instituto Freedom House (Casa da Liberdade) fundada em 1941 nos Estados Unidos, com sede em Washington. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos e se constituiu tendo como princípio a defesa do Estado Democrático de Direito e, entre outras atribuições, realiza pesquisas em vários países e anualmente publica relatórios com indicadores da liberdade no mundo, além do monitoramento de eleições.

Em relação ao Brasil, os dados de 2020 têm índices similares ao do V-Dem e constata que desde 2018 houve uma queda acentuada dos índices de liberdade e democracia. Os dados indicam que a democracia brasileira atingiu 79 pontos, em uma escala de 0 a 100 em 2017 e em 2020 caiu 5 pontos, recuando para 74 (Os dados são analisados pelo cientista político André Borges, Professor associado do IPOL/UnB e está disponível em https://www.academia.edu/45613676/A_Eros%C3%A3o_da_Democracia_Brasileira_e_o_Sil%C3%AAncio_dos_Coniventes).

O que esses índices evidenciam é que o país retrocedeu na proteção dos direitos humanos, do meio ambiente e dos mais vulneráveis. Apenas um exemplo: O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil de 2019, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), afirma que no primeiro ano do atual governo houve uma intensificação das expropriações de terras indígenas, grilagens e invasões (madeireiros, garimpeiros etc.,) e recorde de assassinatos de indígenas (https://www.xaverianos.org.br/pastoral-indigenista/1466-recorde-no-numero-de-assassinatos-de-indigenas-em-2019).

Segundo o relatório “consolida-se de forma rápida e agressiva em todo o território nacional, causando uma destruição inestimável” e que “as violências praticadas contra os povos indígenas fundamentam-se em um projeto de governo que pretende disponibilizar suas terras e os bens comuns nelas contidos aos empresários do agronegócio, da mineração e das madeireiras, dentre outros”. O Relatório aponta que houve o aumento de casos em 16 das 19 categorias de violência sistematizadas pela entidade e neste ano, se associa à expansão da pandemia nas áreas indígenas (https://www.terra.com.br/noticias/brasil/pandemia-avanca-na-amazonia-e-ameaca-povos-indigenas,a135789ea345246c3a2a2ae0b0dfcd8fkqia1mxx.html).

Em março de 2021 foi divulgado um documento assinado por mais de 200 economistas, empresários e banqueiros e ex-autoridades do setor público (como o ex-presidente do Banco Central) com críticas ao governo, cobrando mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social, afirmando ser “falso o dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. E faz uma crítica aos que desdenham da ciência, defendem tratamentos sem eficácia comprovada e estimulam aglomerações e que isso “reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos e aumenta custos que o país incorre”.

Esse comportamento se dá em meio a uma pandemia e se situa no âmbito de uma tendência de erosão das liberdades civis e ameaças à democracia. E, como os dados dos institutos demonstram não é específica do Brasil. Larry Diamond na apresentação da edição brasileira do livro O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo (Editora Atuação, Curitiba, 2015) afirma que desde 2000 contabilizou 25 colapsos democráticos no mundo “não apenas através de flagrantes golpes militares, mas também por meio de degradações graduais de direitos democráticos e procedimentos que por fim empurraram a democracia acima do limiar do autoritarismo” e um aspecto importante que ele ressalta é que “o caminho para a recessão democrática tem sido pavimentado com fracas instituições legais e políticas, corrupção descontrolada e má governança crônica”.

No livro Como as democracias morrem (Editora Zahar, 2018) Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam que novas formas de autoritarismo surgem mesmo em países com tradição democrática que não conseguem se imunizar em relação ao colapso da democracia e argumentam que uma forma de arruinar uma democracia, menos dramática, mas igualmente destrutiva é que elas podem morrer não nas mãos de golpistas, mas de líderes populistas que subvertem o próprio processo que os levaram ao poder.

Mas nos parece inegável que também podem morrer quando há o silêncio conivente dos que se omitem quando a democracia está ameaçada e precisa defendida. Hoje, em meio à pandemia e suas conseqüências, permanece o risco de retrocessos democráticos e a grande questão para os democratas hoje é a necessidade de uma força política que seja capaz de apresentar um projeto alternativo, com base em alguns consensos, e fundamentalmente, em defesa da democracia.

Experiências efetivamente democráticas no país não tem sido a regra ao longo da história e hoje lutar pela democracia continua sendo um grande desafio, como diz Ilona Szabó de Carvalho, cientista política e cofundadora do Instituto Igarapé “O governo de extrema-direita está avançando de maneira ameaçadora sobre o trabalho e sobre a liberdade de expressão e atuação de ativistas, jornalistas, acadêmicos e artistas, demonizando os direitos humanos e a ciência, perseguindo e criminalizando os adversários e implementando ações intimidatórias e repressivas”, e se refere à esfera digital como a face mais visível da guerra contra a democracia: “A intimidação online, as ameaças e as tentativas de difamação mobilizada por haters, perfis falsos e robôs podem ter consequências graves no mundo real e, cada vez mais são acompanhadas por outras estratégias e táticas que incluem censura, vigilância, ameaças, entre outras” E assim, manipulando e mobilizando ódios e ressentimentos, ameaçam à democracia.

Os dados disponibilizados pelos dois institutos citados são preocupantes, mas o colapso da democracia não é inevitável nem irreversível dependendo da capacidade de resistência dos setores democráticos da sociedade. Não se pode nem se deve se dividir e brigar mais entre si do que com os que querem acabar com a democracia e nesse sentido é imperiosa, hoje, a necessidade de construção de uma Frente Ampla em Defesa da Democracia, com todos os componentes que lhes são inerentes, como as liberdades civis, eleições livres etc.

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