Caleidoscópio junino
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26 de junho de 2021
Caleidoscópio junino

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O mês de São João não é um só, existem vários, muitos, inúmeros. Antes de qualquer coisa vale deixar explícito que o São João é acima de tudo uma festa da colheita. Faz um ano que comecei a escrever por aqui, e as duas primeiras crônicas se referiam ao feijão verde, ao milho, aos calendários de conhecimento empírico e os santos dos sertanejos.

O homem do sertão espera que as primeiras chuvas caiam até o dia de São José, aí tem uma mínima segurança para plantar milho e colher a primeira safra na véspera do dia de Santo Antônio, a safra maior na véspera de São João e a colheita tardia é feita na véspera de São Pedro.

Passado o trabalho da colheita nas vésperas santas, se tudo sair como desejado, tem-se a festa, a fartura, o encontro das comunidades, dos arraiais, quermesses, danças sagradas que nitidamente vieram de uma Europa mais antiga do que as navegações, comidas em generosidade, cores e rituais de fogo.

Esses ritos de fogo que fazem compadres pularem fogaréus, que remetem à luz da fogueira do menino João, à purificação dos rituais pagãos de além-mar, que encanta jovens e velhos com labaredas dançarinas e estralados mil, servem também para queimar o que não presta e simboliza um estado permanente de atenção para o bicho homem, do mato ou da lutumia.

O mês de junho tem cheiro de brasa, tem cheiro de pólvora, de chumbinho, estrelinhas, traques, borboletas, barcos de fogo, fogueteiros, buscapés, tamarineiros, rojões e balões. Essa mesma pólvora que Herman Cortéz usou para destruir e trair Montezuma, trair justamente as sociedades que cultivaram e deram ao mundo o milho, o maiz.

É no mínimo curioso esse sincretismo permanente das festas de São João, católica, pagã, nativa das américas, da velha Europa, nova e arcaica. Uma mistura druida, xamânica, cabocla, rezadeira, curandeira, alquímica, mágica. Recorda sofrimentos, farturas, escassez, alegrias, gratidão, batalhas, renascimento e vida.

Apesar de meu apreço à lógica rural, de ter tido um contato relativo com ela devido às vivencias espaçadas que tive quando criança e dos meus ouvidos sempre atentos às histórias de quem me rodeava, eu tive uma infância, digamos, majoritariamente urbana. E existe magia também no junho da cidade.

Barracas de fogos de artifício, com chapéus de palha, vestidos de quadrilha e camisas quadriculadas penduradas brotavam como capim na Avenida Rio Branco, bem como as pirâmides de milho verde na COBAL de Mossoró.

Na Rua da Estrelinha, as bombinhas de Romulo, Vinicius e as minhas tiravam o sono e o juízo de quem os tinha, causavam prejuízos nas baterias de panelas de nossas casas e nas latas secas de leite que voavam nos telhados alheios.

Quando elas, as bombinhas, queimavam nossas mãos, essas logo eram tratadas com margarina ou clara de ovo, obviamente não sem um “Tá vendo? Foi brincar com fogo, acho é pouco!”, de nossas mães aflitas e lacrimadas.

Na Boa Vista, na casa de minha vó Rosilda e do Velho Evilásio, as coisas funcionavam de outra forma, por ser uma região mais periférica talvez, não sei, mas tinha milho assado na nossa fogueira, dentre tantas que rasgavam a rua, além de menino correndo, adulto bebendo, som alto, Dionísio tocando violão, uma ou outra confusão e cheiro das panelas de milho incensando o ar.

Depois, banho tomado e cabelo penteado, idas ao Golden Park (de diversões) na Estação das artes, maçã do amor, pipoca com manteiga da terra e sal, daí o clássico choro por não querer ir embora. Tinha também algo me dizendo que minha mãe queria me despachar para casa e em seguida poder voltar à festa, e eu tinha razão.

Sempre gostei de ver bandas tocando, talvez por meu pai ter sido trompetista e regente de fanfarra, não sei, só sei que gostava de ver os movimentos dos músicos.

Mas, ver um trio de forró tocando era diferente, eles geralmente estavam no chão, de igual para igual com o público. De vez em quando alguém se arrisca no triângulo ou na zabumba, que bate como um coração assustado, todo mundo suando suor e cachaça, voz do sanfoneiro sempre altiva, ventinho que sai do fole da sanfona, alguém fazendo uma cotinha de dinheiro para pedir a banda que toque mais um pouco.

São João é época de santo, sagrada e com um viés profano, como o carnaval em seu nascedouro, serve para exagerar na fartura do prelúdio do trabalho e escassez. Namorados se aninham, paqueram, dançam, e as cores em caleidoscópio estrelares iluminam a efervescência desse extrato social que tanto nos define e detém, sagrados e profanos.

O mês de São João não é um só, existem vários, muitos, inúmeros, não se define em verbalizações, e sim, apenas no sentido de ser o que somos, talvez por isso tenha me sentido um tanto quanto fosco com sua ausência, mas sigo na esperança de que em 22 iremos queimar fogueiras e nelas os males que necessitam ser queimados. Somos rachadura do chão de açude seco que quando se molha é perfeito berço de vida, dura sim, mas bela vida.

Receita? Jogue um milho na fogueira, manteiga e sal, suba aos céus dos santos, deuses e entidades desta terra.

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