Sobre a servidão voluntária
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Sobre a servidão voluntária

10 de junho de 2021
Sobre a servidão voluntária

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No século XVI, com o poder da Igreja Católica, as monarquias absolutistas justificavam seu poder atribuindo a um “direito divino” no qual a autoridade dos reis emanava diretamente de Deus, e assim o monarca concentrava o poder absoluto. Uma das mais instigantes contestações dessa concepção, Discurso da servidão voluntária, foi de um jovem francês, Étienne de La Boétie, nascido em 1/11/1530 em Sarlat, sudoeste da França, que após se formar em Direito na Universidade de Orleans - segunda mais importante do país na época- em 1553 e se tornou Conselheiro do Parlamentar de Bordeaux (Bordéus ou Bordeaux é a capital e a maior cidade do departamento da Gironda e da região Nova Aquitânia, no sudoeste de França). Morreu no dia 18 de agosto de 1563, com 32 anos. A obra só foi publicada depois, por iniciativa do seu grande amigo, Michel de Montaigne. Há controvérsias em relação à data, mas segundo Montaigne o autor tinha 18 anos quando escreveu, portanto, em 1548.

No Brasil, a primeira edição do Discurso da servidão voluntária foi publicada em 1982 pela Editora Brasiliense (SP), edição bilíngüe, com tradução do professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos, com artigos de Pierre Clastres (Liberdade, mau encontro, Inominável), Claude Lefort (O nome de um) e Marilena Chauí (Amizade, recusar do servir). Com o tradutor explica na introdução, o texto da edição francesa (que consta no livro) foi baseada na tradução de Pierre Leonard do manuscrito De Mesmes, mas também traduz outra, de Charles Teste que considera como “traição grosseira” do texto original.

O manuscrito teve muitas edições em vários países, ao longo dos séculos, mostrando sua pertinência e atualidade porque trata de um tema perene, não um escrito de circunstância e assim permanecerá enquanto existir tiranias e servidão, e a pior forma delas, a voluntária. Nesse sentido não é específica de um país ou de um tempo.

As reflexões de La Boétie são uma defesa da liberdade e contra todas as formas de tirania. Para ele não é natural que as pessoas se sujeitem ao poder absoluto, porque todos nascem livres e iguais e seu objetivo é compreender as razões pelas quais se troca a liberdade pela servidão.

Nesta obra, a questão central é a relação de sujeição, de servidão, indagando “Como Um, dotado de apenas dois olhos, duas mãos, dois ouvidos e dois pés, frequentemente um homúnculo covarde e não um Sansão ou um Hércules se encontra provido de milhares de olhos e ouvidos para espionar, de milhares de mãos para pilhar, de milhares de pés para esmagar? Onde obteve esse corpo gigantesco? A resposta “Sois vós quem lhe dais todos os órgãos de que precisa para vos manter sob seu poderio, para vos destruir e às vossas famílias, para pilhar vossos bens e derramar vosso sangue em guerras que o fortalecem para vos enfraquecer. “É o povo que gera o soberano que o aniquila”.

Ao afirmar a permanência da obra é porque no presente ainda enfrentamos os mesmos dilemas em relação às tiranias, especialmente o que ele denominou de servidão voluntária, não mais as monarquia absolutistas, mas uma variada gama de tiranos, de governantes autoritários que, mesmo governando contra o povo, é apoiado por uma parcela, às vezes expressiva, da sociedade que ele tiraniza.

Por quê? Indaga La Boétie. O tirano é um homem como outro qualquer, possui apenas dois olhos, duas mãos, um corpo e dois ouvidos “ De onde saiu essa figura colossal que nos esmaga, esses olhos que nos espionam, essas mãos que nos pilham? De onde sai toda essa força que a todos condena, julga e agride?”

Uma das explicações talvez seja a eficácia das sofisticadas técnicas de manipulação, propaganda, que incluem as mentiras. Para ter o apoio da sociedade é fundamental, como força política decisiva, ter essas ferramentas para influenciar a opinião pública e conseguir consensos. O nazismo compreendeu isso muito bem ao fomentar ódio aos judeus e dominar pelo medo, de construir um inimigo a quem se deveria exterminar (além de judeus, comunistas, homossexuais, ciganos etc.) e teve apoio para isso. E mostrou também como um tirano pode ser eleito, como Hitler , Mussoline o foram, como vários tiranos atualmente, graças à eficácia propagandística, mas também por encontrar na sociedade um ambiente favorável. Nesse sentido, os meios de comunicação tiveram (e tem) um papel importante criando o inimigo (interno), ajudando a articular o ódio, às vezes usando um princípio moral “republicano”, como combater a corrupção, por exemplo, como se corruptos fossem apenas os outros, acusando como se fossem juízes e alimentando o “consenso” entre os “cidadãos de bem”.

Analisar o fenômeno da obediência (e do fanatismo dos que aderem) nos permite, por exemplo, compreender porque as pessoas votam em políticos cujas políticas quando no poder vão contra seus interesses e mesmo contra a própria democracia, com o aumento dos índices de pobreza e desigualdades, desemprego, desmantelamento do Estado em benefício de uma minoria, repressão e perseguição a opositores, para mencionar apenas alguns de seus desdobramentos.

Segundo La Boétie certamente não é pelo uso exclusivo da força, das armas (embora precise dela para se manter), no entanto, o fato é que o tirano não é detentor de nenhuma excepcionalidade humana. E o poder que ele tem fomos nós que demos para ele. Mas não seria essa permissão também o desejo de muitos de se tornarem tiranos daqueles que ocupam posições inferiores? Ou seja, aceita a servidão voluntária por identificação com o tirano e ao mesmo tempo por serem (ou desejarem ser) também tiranos.

Como explicar, por exemplo, que um dos piores líderes para a condução de uma crise como da pandemia da covid-19 continue sendo objeto de admiração e culto à personalidade por parte de quem não apenas o apoiou como continua apoiando, a despeito de todos os fatos provarem sua incapacidade?

Um tirano, se democraticamente eleito, tem que ter respaldo, apoio social, mesmo que não seja majoritário, mas que tenha capacidade de mobilização e pressão, que hoje tem algo que não tinha na época de La Boétie, a tecnologia com ampla capacidade de manipulação, as redes sociais... mas para isso é preciso que haja uma identificação com aquilo que o líder defende. Nesse sentido, não são apenas iludidos por discursos, rasos e não raro mentirosos, mas são igualmente reacionários, preconceituosos, autoritários.

Os que não aderem, discordam de suas políticas, atos e palavras, a disseminação de mentiras, desinformação (ou falsa informação), do pensamento estereotipado, análises simplistas etc., não são apenas desqualificados, mas hostilizados, assim como qualquer tentativa de debate mais aprofundado baseado em fatos e não em mentiras.

Exaltar os chamados “valores da família”, usar politicamente a religião (afinal, como ser pró-Deus saudando torturadores?), defesa de armas etc. Como admirar quem expressa aversão a minorias étnicas e sociais (negros, os LGBTQI+ indígenas etc.? ).

Uma questão importante é: o que e como fazer quando um tirano ameaça o país (ou a maioria do seu povo) e que com os que seguem apoiando quem os jogam no abismo? Como indaga La Boétie: “No momento, gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que como tantos homens, tantos burgos, tantas cidades e tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo (…). É esse povo quem se escraviza e suicida quando, podendo escolher entre a servidão e a liberdade, prefere abandonar os direitos que recebeu da natureza para carregar um julgo que causa seu dano e lhe embrutece”.

O que explica a adesão a um tirano? Por que se adere a ideários violentos, autoritários? Por que se aceita submeter-se? Theodor Adorno, no livro ‘The Authoritarian Personality‘(1950) com Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson, e Nevitt Sanford, mostra como o autoritarismo não é um evento restrito a determinada sociedade e que muitas pessoas de todas as sociedades, por diversos motivos, podem apresentar alto grau de adesão ao autoritarismo, mesmo em sociedades democráticas.

A lição fundamental é que o poder de um tirano não depende apenas da coerção, como ensina Gramsci, mas também e especialmente do consenso. É no consentimento ativo que se constitui o poder, legítimo ou não. E segundo La Boétie, para resistir ao tirano basta que o ignoremos, que deixemos de apoiá-lo. Para derrotá-lo, basta não dar aquilo que ele deseja, se recusar a servi-lo. Ou seja, basta o desejo de não mais ser subjugado, ter vontade de ser livre, para que nos liberemos desta condição.

Como diz Marilena (Contra a Servidão Voluntária. Autêntica Editora/ Fundação Perseu Abramo, 2013) o Discurso da servidão voluntária não propõe um programa de ação para a luta contra a tirania, afirma apenas não se lhe dê o que ele pede. “Não servir é resgatar aquilo que é contrário à servidão: a igualdade dos amigos (...) ou como indaga La Boétie “Como se enraizou tão antes essa obstinada vontade de servir? Eles o fazem porque não desejam a liberdade e não a desejam porque ela lhes parece ‘demasiado fácil’. A renúncia à liberdade é gênese simultânea da vontade de servir e do poder do Um, renúncia produzida por uma divisão no interior da vontade, cindida entre o desejo de liberdade e o desejo de servir”.

Para ela “Ter o corpo e o espírito dos homens – eis o desejo do tirano; ter parte no mando e nos espólios – eis o desejo dos grandes; ter segurança, crenças e bens – eis o desejo do povo. Todavia, porque nenhum desses desejos pode ser plenamente satisfeito no real, a servidão voluntária produzirá um bem imaginário que possa figurar de maneira fantástica o preenchimento do desejo de servir: a figura do Um”.

O que La Boétie propõe é uma política da recusa da servidão voluntária, recusa à dominação do poder sobre nós, mas isso, importante salientar, não pode nem deve ser confundida com uma negação da política e sim como a necessidade de uma ação política da recusa, uma política de não-dominação ou de servidão e de se buscar novas relações e modos de vida não-autoritários. Uma cultura democrática com mecanismos de regulação do poder constitui o melhor antídoto contra a servidão. Voluntária ou não.

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