Round 6 e o abismo da ideologia
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Round 6 e o abismo da ideologia

19 de outubro de 2021
Round 6 e o abismo da ideologia

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Consegui identificar pelo menos três estratégias de ataque contra a série sul coreana Round 6, que se tornou por esses dias um fenômeno global e uma das séries mais vistas na Netflix.

A primeira delas é completamente inútil.

Após várias escolas privadas emitirem “notas de alerta” aos pais sobre os conteúdos inapropriados da série, descobri que mais de 80% dos colegas da turma de oitavo ano da minha filha Sarah (14 anos) já haviam visto, estavam vendo ou declaram expressamente a intenção de assistir Round 6.

Nem o discurso histérico de um vídeo que circulou no grupo de mães do WhatsApp, em que um sujeito que parecia um pastor ou um deputado bolsonarista (o que não parece fazer muita diferença hoje em dia) evocava imagens de violência, tráfico de órgãos, tortura psicológica e homoerotismo; estabelecendo uma articulação meio delirante que misturava teorias conspiratórias sobre o uso da Deep web e redes de pedofilia relacionadas a jogos infantis; dissuadiu a turma da minha filha.

A meninada correu pra ver a série com força.

No fim das contas, esse tipo de estratégia de apavoramento epistémico, proferida em tom alarmista por coroas de meia idade, funciona para os pais e atua, na maioria das vezes, como um poderoso gatilho para que os filhos consumam o artefato proibido.

A segunda estratégia é ridícula.

Circulou pela minha TL travestida de um meme divulgado pelo deputado Kim Kataguiri. A ideia é dizer que, na verdade, Round 6 é um alerta contra os perigos do comunismo global que domina o planeta. Segundo essa estratégia retórica, o capitalismo verdadeiro nunca existiu de fato e essa sociedade de merda em que nos encontramos não tem nada de liberal. Ela seria, na verdade, um mundo comunista disfarçado.

Essa inversão acaba levando, se você não for um crente fervoroso da religião do mercado e tiver a capacidade cognitiva acima da média pré-escolar, a compreender que, se o mundo de Round 6 é mesmo uma distopia socialista então o futuro liberal prometido pelo MBL deve ser o seu oposto, ou seja, uma sociedade em que o dinheiro não é o valor central, onde a igualdade não é um esquema meritocrático em que apenas os mais fortes sobrevivem, onde a cooperação e a solidariedade do grupo valem mais do que o desejo individual de vitória e onde o controle da propriedade privada não está nas mãos de uma elite financeira amoral, mas sim socializado em nome do bem coletivo. Ou seja, a “memologia” de Kataguiri nos leva a pensar que seria muito mais interessante trocar o socialismo de Hayek e Von Misses, pelo liberalismo capitalista de Marx e Engels.

A terceira estratégia, por sua vez, é bem mais sofisticada.

Transmitida por matérias em sites como os da BBC, a abordagem não busca nem apavorar as pessoas nem fazer inversões toscas e distorcidas. O esquema é classificar Round 6 como uma série que traz críticas à sociedade sul coreana.

Tratando de aspectos pitorescos da Coreia do Sul, como o crescimento das igrejas evangélicas em um ambiente historicamente budista, o modo como são tratados os refugiados da Coreia do Norte ou a obsessão nacional com jogos, esse tipo de abordagem tende a nos fazer pensar que a distopia apresentada na série diz respeito a um mundo muito distante, uma realidade exótica de uma cultura oriental que não tem nada a ver com o nosso inferno cotidiano.

Seguindo essa estratégia, o horror moral que assistimos na tela é inerente ao caráter “coreano” da Coreia capitalista e não teria nada a ver com o aspecto “capitalista” dessa mesma Coreia.

No fundo no fundo, o que essas estratégias buscam desesperadamente é proteger nossa visão da obscenidade fundamental de Round 6 e salvar, dessa maneira, a ideologia que sustenta nosso mundo.

Essa obscenidade fundamental vai se descortinando, episódio a episódio, na medida em que vamos sendo expostos ao horror moral que se esconde por trás da aplicação pura e radical da ideia de isonomia liberal.

A noção de que, se garantirmos uma igualdade na partida, colocando todos os competidores no mesmo nível, o vencedor da disputa ganhará o prêmio final por mérito e não por privilégio, embala os sonhos do liberalismo econômico desde sua mais tenra infância.

O mote fundamental de Round 6 é simples: e se aplicássemos em um ambiente controlado, os princípios puros de um liberalismo radical, para garantir uma competição isonômica, seguindo um modelo dos reality shows, o que aconteceria? O que veríamos? Que tipo de abismo seria contemplado com a observação desse jogo?

A real violência que vemos na série, ao acompanhar o experimento radical de competição capitalista, é a redução moral dos competidores a uma brutalidade selvagem que leva os jogadores ao assassinato, a loucura e ao suicídio. A obscenidade central exibida episódio a episódio não tem nada de sexual ou homoerótica. A pornografia que contemplamos é a da imagem dos corpos dos competidores eliminados, lacrados em caixões com formato de embalagem de compras, sendo incinerados em fornos crematórios. O escândalo que incomoda de verdade é o da obscenidade estrutural da ideologia que dá forma e justifica nossa realidade.

Por isso os grupos conservadores e liberais, em sua luta desesperada para sustentar essa ideologia que mantem firme a máquina do capitalismo com dominância financeira, usam estratégias desse tipo para fazer com que a gente não veja aquilo que a série joga, de modo obsceno, na nossa cara.

O abismo de nosso mundo. Um mundo em que os perdedores somos todos nós e que a vitória é apenas a ilusão que alimenta a eterna roda dos eliminados.

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