Academia norte-rio-grandense de Letras
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Academia norte-rio-grandense de Letras

6 de dezembro de 2021
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Por M. Salustino 

...Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz
Amarra o teu arado a uma estrela
E aí tu serás
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus...

Gilberto Gil

 É um tempo impopular para a ANRL, cada vez menos conhecida fora do meio literário local, criticada pelas escolhas que privilegiam pessoas com os mesmos perfis e indiferente às questões sociais que necessitam do apoio dos baluartes culturais.

O fato gritante de não representar a quase totalidade da população potiguar, resumindo-se a eleger pessoas com certo poder aquisitivo, predominantemente brancas e do sexo masculino é grave. O resultado é a formação de um grupo fechado e pouco afeito a buscar a interlocução com quem produz a literatura plural e representativa que a contemporaneidade trouxe à tona à custa de intensas lutas. Os tempos são outros, mas nossa academia finge não perceber.

Os jovens leitores estão distantes da instituição, que não faz o menor esforço de se aproximar. Hoje, nenhum escritor ou escritora da ANRL representa a literatura infantil ou juvenil do estado, muito menos a negra ou a indígena. Pelo visto também é difícil encontrar mulheres que escrevam, como parece sugerir a sucessão de homens eleitos nos últimos tempos.

“Ah, mas elas não se candidatam!”, pode objetar o leitor. Poucos sabem que, na maioria das vezes, quem incentiva a candidatura dos atuais, são os que já estão lá. E pelo visto, os incentivos não chegam às pessoas que não tenham aproximação pessoal.

Importa pouco se o percurso de vida do eleito quase nada tenha a ver com a escrita, ou alguma outra manifestação artística à altura dela; se sua trajetória não é marcada por ações em favor das letras ou das artes em um estado carente de leitores e de público para os espetáculos, shows, peças e produções visuais criadas aqui.

Comenta-se que uma das estratégias para se tornar bem-quisto pelos acadêmicos eleitores é promover encontros informais regados a boa comida e boa bebida e pergunto o que isso tem a ver com a tão popularizada expressão “imortal”. Imortal não seria aquele que produz algo extraordinário capaz de sobreviver à perenidade da vida? E alguém com essa estatura não teria o poder de convencer apenas com a força da sua arte?

A única regra de ouro dessa história é que o candidato precisa ter um livro publicado, o que se resolve rapidamente para quem conta com ao menos uma obra razoável, revisores dedicados e dinheiro para bancar os custos de uma gráfica. Depois, o eleito corre para o abraço e comemora o feito como sendo a recompensa de uma longa e brilhante jornada voltada à intelectualidade ou o reconhecimento do impacto que sua arte causou na comunidade.

Fernanda Montenegro e Gilberto Gil acabaram de abrilhantar a Academia Brasileira de Letras com suas eleições. Eles sim, são a expressão fiel de artistas que deixam marcas na sociedade. Depois da falha imperdoável da não eleição de Conceição Evaristo, essas duas aquisições renovam as esperanças de um futuro mais justo e representativo e deveria servir de exemplo às academias dos estados.

Cada vez menos pensadores sentem o desejo ou a segurança de se candidatar à ANRL. O estranhamento em relação a alguns escolhidos e o constrangimento de ser preterido por um aspirante de menor envergadura (possivelmente um jurista) afasta os legítimos candidatos. É inequívoco que a academia local carrega a fama de elitista. Analisando o seu quadro compreende-se o porquê.

Tenho certeza de que o leitor concorda que o voto deveria privilegiar quesitos que nada tenham a ver com amizade, com simpatia e com receber bem. Aliás, tal processo eleitoral neste 2021 pandêmico deveria ser matéria de escândalo. Assim como no pós-guerra de 1945, precisamos de figuras capazes de atingir em cheio a nossa dor e o nosso medo. Capazes de nos acordar da apatia. Capazes de curar a cegueira que invisibiliza pessoas por causa da sua cor ou da sua origem, impedindo-as de serem reconhecidas como notáveis. E enquanto escrevo, penso em artistas como Carlinhos Zens, Antônio Francisco, ou escritoras como Graça Graúna, Constância Lima Duarte e Salizete Freire. Tais figuras conhecidas e respeitadas no RN deveriam receber o mesmo incentivo da ANRL a uma candidatura.

Não sendo um espaço reservado aos grandes artistas potiguares da atualidade, o que é então, a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras? Respondo: salvo honrosas exceções, um círculo de corporativistas cidadãos potiguares.

Eles têm o respaldo legal para fazer desse modo é claro. Mas não esperem o respeito ou popularidade a que teriam direito, caso pensassem menos em si e mais na coletividade. Contentem-se com a admiração do seu reduto: familiares e amigos.

E pensar que Machado de Assis começou essa história no Brasil. O sonho de um grande transformado em um chá de compadres que não estão nem aí para o fato de representarem um passado excludente e com a visão unilateral que tanto mal faz à sociedade.

Até quando?

M. Salustino é escritora, pesquisadora e ensaísta

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