Sobre o que está sob a sombra
Natal, RN 29 de mar 2024

Sobre o que está sob a sombra

9 de dezembro de 2021
Sobre o que está sob a sombra

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Estive ausente deste lugar de escrita por algum tempo. Nessa ausência em que me coube (bem) silenciar, dentre outras coisas, fui me dedicar àquilo que, na condição de pretensa contadora de histórias, me apraz por demais: livros e filmes. E foi por meio de um caso em que ambos convergem que tomei ânimo para sair da sombra e voltar às claras com este texto que trata, mais uma vez, de histórias contadas através de livros. E filmes.

Eu sempre tive fascínio, em matéria de práticas de leitura e escrita, daquilo que está oculto, subterrâneo, invisível. Tanto que um dos meus temas prediletos de pesquisa tem a ver com o mundo dos fanzines, esses dispositivos enunciativos que estão à sombra da oficialidade e às margens do grande centro onde orbitam livros e revistas.

Assim, qual não foi minha alegria ao esbarrar, aleatoriamente, com o filme “O mistério de Henri Pick”, comédia francesa de 2018 com roteiro e direção de Rémi Bezançon. Baseado no romance de David Foenkinos, de 2016, a trama se inicia com uma biblioteca só de livros rejeitados por companhias editoriais. Lá, em visita casual, uma jovem editora encontra uma pérola perdida entre os escritos enjeitados (a lista de títulos de alguns é por si só hilária) e o transforma rapidamente em sucesso editorial. Mas há um detalhe: o romance teria sido escrito por um prosaico e já falecido pizzaiolo. E, para apimentar mais ainda a jornada narrativa, no meio do caminho tinha um crítico literário cético.

Para quem se interessa sobre o mundo dos livros enquanto objeto cultural, é bom ver ali a síntese de aspectos e problemas importantes, como a relação entre autores e suas práticas (inclusive os autores anônimos que estão nas sombras), bem como a atuação decisiva de figuras como editores e divulgadores; um outro elemento a ser destacado é a pluralidade autoral no diálogo em que se comparam, por exemplo, características estéticas de um romance com outras formas, tais como cartas ou listas de compras. Aliás, o poeta português Fernando Pessoa, com seus célebres heterônimos, é mencionado no filme.

Esse diálogo em particular me remete à discussão que Michel Foucault faz, particularmente em uma obra intitulada “O que é o autor?”. Mais do que associá-lo a uma pessoa, é preciso encará-lo como uma função discursiva cuja identidade se constrói pela própria enunciação (com elementos ligados a escolha de temas e palavras, formas preferenciais de gêneros, estilo, sintaxe etc.). Além da figura do autor ser uma construção (que emerge historicamente a partir de embates junto a editores e livreiros acerca de direitos de propriedade), é preciso encará-la tanto como uma unidade (sem dúvida, uma mesma mão que escreve, um só corpo que profere) como uma dispersão enunciativa (Foucault toma como exemplo, n”A arqueologia do saber”, o caso de Nietzsche, cuja “obra” pode abarcar desde as autobiografias de infância aos últimos aforismos assinados como Dionysos em notas de lavanderia.

Mas o que eu destacaria mesmo no filme (ou no livro?) “O mistério de Henri Pick” é o lembrete sobre a existência de autores que, sob as sombras do mercado editorial, buscam um lugar ao sol. Dentre eles já estiveram, por exemplo, nomes como Kafka, James Joyce e Proust, por exemplo. Em outras palavras: cai bem dar uma chance a nomes desconhecidos que podem estar por trás de grandes livros.

Ou filmes.

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