Sobrou para o Aristides
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Sobrou para o Aristides

6 de dezembro de 2021
Sobrou para o Aristides

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Durante a semana que passou, o grande debate na mídia jornalística e nas redes sociais não era a pandemia com a variante do vírus ômicron e o consequente cancelamento das festas de reveillon nas capitais, o descalabro na economia com mais uma alta do dólar ou a derrota do Flamengo diante do Palmeiras na Libertadores. O que muitos queriam saber mesmo era, quem afinal seria o Aristides.

A pândega começou quando, no final de semana passado, no dia 27 de novembro, uma mulher chegou a ser presa na Via Dutra, no município de Resende-RJ, acusada de ter insultado o presidente Jair Bolsonaro, enquanto este trafegava na avenida, acenando para os carros em visita à cidade, quando se dirigia para uma formatura de cadetes da Aman-Academia Militar das Agulhas Negras. A mulher foi conduzida a delegacia por agentes policiais e autuada por injúria. O motivo da acusação: a suposta infratora teria xingado o presidente de “noivinha do Aristides”.

Bastou isso para que o termo “noivinha do Aristides” praticamente quebrasse a internet e se mostrasse a expressão mais procurada nos sites de busca nesta semana. Mesmo que a mulher, a fisioterapeuta Camila Santos, uma trabalhadora da área saúde, tivesse afirmado dias depois, nos meios de comunicação, que não utilizou a suposta expressão injuriosa que a levou à delegacia e ganhou as redes, e sim chamado o presidente de "Filho da puta", indignada   segundo ela, com a situação de desgoverno com a pandemia. Note-se que a procura da origem do tal “Aristides” foi o suficiente para gerar amplo debate, memes, gozações e até um racha discursivo dentro do campo ideológico da própria Esquerda.

É! Isso mesmo. A “noivinha do Aristides” foi tema de acaloradas discussões em grupos de whatsapp, comunidades no facebook e mesmo publicações em sites de grupos progressistas. Vale destacar aqui artigo publicado no site vermelho.org, onde o policial e militante antifascista, Fabrício Rosa, denuncia a homofobia inerente ao termo jocoso, no interessante escrito, intitulado: “A noivinha do Aristides e a homofobia na esquerda”.

Mas, afinal, quem é (ou foi) o Aristides e porque, no fim das contas, o uso desse genitivo acabou por gerar tanta atenção num país mais do que polarizado politicamente e que, hoje, polariza tudo, desde da necessidade ou não de vacinas, se a música de Anitta é o ou não arte, e sobre o formato plano ou arredondado do planeta terra?

Tenho, em particular, um interesse especial por este nome, “Aristides”, até porque descobri, na adolescência, por um relato da minha avó em Maceió, que este era o nome do pai do meu falecido avô paterno. Aristides, meu bisavô, originário do Sergipe, era filho de escravos alforriados, e,  durante décadas, ostentei, com orgulho, ser descendente de uma geração de afrobrasileiros que conseguiram escapar da miséria e ocupar algum espaço de pertencimento social. Eis que agora, em pleno século XXI, vejo o nome de um ancestral literalmente na boca do povo, com milhares de postagens e comentários sobre um tal Aristides, que teria uma “noivinha” que não seria tão noiva assim.

Senão, vamos direto aos argumentos conceituais. Segundo a explicação dada pelo staff do próprio presidente, o termo que parece até singelo, num primeiro momento, na verdade seria pejorativo pelo fato de que estava se associando o nome próprio invocado a um ex-instrutor de Bolsonaro, dos tempos de  cadete na mesma AMAN onde, na última semana, o presidente brasileiro tinha como destino após ser xingado pela incauta motorista, que tornou-se infratora de um crime contra a honra presidencial, do dia para a noite. Sabia-se agora “a noivinha” em questão, era um termo de teor altamente homofóbico no meio militar, que servia para designar cadetes molestados sexualmente por seus mentores. Até fotos de um jovem Bolsonaro,  cadete,  apareceram em profusão nas redes, acompanhado de homens onde se insinuava ser o até então misterioso, amante-instrutor. Tudo fake news, rapidamente revelada. Mais um dos falseados mitos,  construídos sobre o "mito" na Internet. Mas, afinal de contas, por que tinha que ser logo com o pobre do Aristides?

Em Crátilo, um dos diálogos de Platão, sobre a sabedoria dos nomes, encontram-se para debater Sócrates, Hermógenes e o próprio Crátilo, mediados pelo primeiro, e no interior do debate faz-se a distinção entre o naturalismo, defendido por um, e o convencionalismo invocado pelo outro. Traduzindo, discute-se se cada coisa ou pessoa já nasce com um nome que lhe é naturalmente atribuído pelas qualidades que tem, ou se os nomes não passam de convenções, atribuídas discricionariamente por conta da lei ou dos costumes. Haveria, portanto, coisas iguais que só teriam um nome que as definisse, bem como haver diversas coisas com um mesmo nome. Colocando isso num contexto social, a palavra “viado” poderia servir para definir apenas um animal silvestre que já nasceu predisposto a ter esse nome ou então uma palavra que pode ter diversos significados, inclusive, o de pejorativamente definir uma pessoa por conta de sua orientação sexual. Parece que é por essa via que “Aristides” acabou se tornando algo mais do que apenas um nome utilizado nas gerações antigas, por nossos avós, para definir agora o viril amante mais velho de jovens recrutas, como o atual presidente um dia foi na juventude, escondidos nas cocheiras dos quartéis.

Levando-se em conta o idealismo platônico e sua filosofia sobre os significados dos nomes, fico me perguntando do tempo em que os amigos chamados Ricardo apenas tinham o nome de um célebre monarca inglês que lutou nas cruzadas, até ficarem mais conhecidos pelo seu nome no aumentativo, como sinônimo do amante à espreita na alcova, escondido debaixo da cama ou de um armário, enquanto a esposa adúltera (olha o machismo estrutural), era a infratora dos contos de Nelson Rodrigues, a esconder seu “Ricardão”. Houve o tempo, inclusive, em que o órgão sexual masculino era descrito por diversos nomes próprios, como “Leopoldo”, “Roberlau” ou “Braúlio”, em todos esses nomes, por debaixo do deboche, da jocosidade e da brincadeira sexista, estavam verdadeiras representações sociais de como o brasileiro encarava a si próprio na sua sexualidade, e, mais, como desenhava seus próprios preconceitos.

É justamente sobre preconceito e discriminação que Fabrício Rosa estabelece sua crítica, no artigo mencionado, quando informa que, com o episódio da mulher detida em Resende, como uma forma de se vingar de Bolsonaro, muitos militantes progressistas ou identificados com a esquerda entoavam o coro xingatório ao presidente, acreditando que, com isso, estariam retribuindo o mesmo insulto homofóbico a quem de onde proveio a homofobia. Bolsonaro mereceria ser insultado pelo termo que mais odeia, ao ser identificado com uma comunidade de quem tem verdadeiro asco. Afinal, quem não se recorda dos tempos em que o atual presidente era deputado, e ele disse que “preferia ver um filho morto em acidente a um homossexual” e que ser vizinho de um casal gay seria motivo para desvalorização do imóvel? Todos aqueles e aquelas que foram violentados pelas palavras criminosas de Bolsonaro seriam, então, redimidos por conta da condição pretérita de “noivinha” do cadete que virou capitão. Ledo engano.

Não ganhamos em xingar Bolsonaro de “noivinha”, “baitola”, “viado” ou qualquer xingamento que, na verdade, revele durante quantas décadas pessoas que tinham uma opção sexual diferente do padrão dominante numa sociedade, vinham também a receber os mesmos esculachos verbais, por tão somente serem o que são. O pior, ao louvar as proezas sexuais do tal Aristides, a violar cadetes, estamos, na verdade, reproduzindo mais uma vez esquemas discriminatórios que não combatem; na verdade, estimulam ainda mais a estigmatização de relações sexualmente ativas e passivas dentre parceiros do mesmo sexo. Ser noiva de alguém, mesmo do Aristides, não deveria servir de pretexto para se processar criminalmente alguém por se sentir injuriado, e, muito menos, para se atribuir qualquer condição pejorativa a uma relação homoafetiva que, assim como no caso da mulher adúltera de sessenta anos atrás, servia apenas para legitimar a dominação cruel de um gênero sobre o outro, a opressão de uma orientação sexual sobre a que lhe seria diferente. Isso não pode exigir numa sociedade que se diz (ainda) democrática, principalmente pelas vozes daqueles que querem defender essa democracia, subjugada por um estado quase permanente de exceção.

Ao se querer insultar o Bolsonaro por algo que sua principal acusada negou ter feito à Polícia, tira de foco outro crime, outra desfaçatez, essa sim bem mais digna de nota e que não mereceu a devida repercussão nos meios sociais progressistas, publicação de notas de repúdio e nem manifestações contra o fim do golpismo e autoritarismo: a condução até a Delegacia da mulher que xingou o presidente numa rodovia.

Camila Santos foi absurdamente conduzida por policiais rodoviários federais que se encontravam na rodovia a uma Delegacia da Polícia Federal, onde foi autuada em flagrante num termo circunstanciado por um crime de injúria contra o presidente da república, posteriormente liberada após assinar um termo de compromisso de comparecer ao Juizado Especial.  Ora, como nas piores ditaduras,  agentes do Estado cumpriram com uma ordem manifestamente ilegal para satisfazer um presidente ofendido em sua masculinidade. De outras vezes,   chamado à exaustão de corrupto ou genocida em diversos atos públicos  no Brasil, o presidente brasileiro nunca se preocupou em ordenar a prisão de desafetos. Desta vez, porém,  ao ser fantasiosamente chamado da "noivinha " de alguém,  o presidente da "fraquejada" ao gerar filhas mulheres, sentiu-se efetivamente ofendido.

Não se enganem! O abalo pior para o Estado de direito não é ter um presidente que se sente afrontado em sua dignidade ou autoridade mediante um insulto (gratuito ou não) em via pública.  O verdadeiro assalto às liberdades é vc ter de volta, retirado do abismo sujo da história,  algo do passado que ainda nos envergonha,  que é ver a satisfação dos verdugos em se sentirem intocáveis,  pela imposição do medo, na base do castigo e da imposição do Direito Penal como um instrução de dominação política.  Desde que iniciou seu mandato,  Bolsonaro é denunciado, inclusive por organizações internacionais,  de governar o país como numa ditadura de uma republiqueta de bananas, com um Congresso venial, fisiológico e às turras com uma suprema corte e uma impressa ainda livre, que limitam seus hábitos golpistas.  De qualquer forma,  utilizar da mão do Estado para reprimir e humilhar,  sob o pretexto de invocar um xingamento com base no nome de alguém, apenas revela que, no jogo narrativo homofóbico que caiu parte da Esquerda,  Bolsonaro e os bolsonaristas mais uma vez foram felizes no seu diversionismo,  ao esconder pela mentira o que realmente importa: a detenção arbitrária em nome da defesa cega de um presidente que, se tem o direito de ter ou não amores homoafetivos na juventude,  na verdade brinca, com uma figura de linguagem criada ou cultivada por eles mesmos, como pretexto para caçar liberdades.

Já dizem alguns sites que o "noivinha de Aristide" teria sido, na verdade,  um termo criado por um blogueiro petista,  para atacar o presidente,  diante de seu passado militar pouco notável.  Não importa. O que importa, maus uma vez, é que a difusão irresponsável de um apelido preconceituoso não pode servir, ele mesmo, como instrumento de dissimulação para esconder a repressão pura e simples,  além da óbvia manipulação da verdade.  Não caíamos nessa!

Lembro-me de outra noivinha. Desta vez da noiva da peça de Nelson Rodrigues,  Alaíde,  em Vestido de Noiva. Na obra,  a personagem principal,  morta após ser atropelada e delirar no hospital,  relembra em alucinação sua vida, e as disputas que tinha com a irmã, Lúcia,  pelo amor de Pedro. Alaíde casa com Pedro mas este, antigo amor de Lúcia, acaba por ter um caso com ela, após o casamento da irmã e, juntos  tramam a morte de Alaíde,  até o fatídico dia do atropelamento. Na alegoria dos nomes já vista em Platão,  se quiséssemos,  num exercício de imaginação,  imaginar Alaíde como parte do povo brasileiro, em oposição ao presidente,  e o eleitorado  bolsonarista  como sua irmã,  veríamos que o risco maior dos progressistas é ser atropelado pelo bonde da história,  do que casar efetivamente com a democracia.  Nesse sentido,  somos na verdade,  as noivas traídas após o altar da redemocratização, por vermos parte de nossos irmãos tendo um caso aberto com o fascismo,  querendo resgatar uma ditadura deixada no passado.  É isso que Bolsonaro e seus asseclas reacionários e homofóbicos tentam fazer continuamente, com seu exército de fake news,  prisões arbitrárias sem o menor nexo, manipulando ideias e opiniões e é assim que o Aristides surge,  como o noivo ideal da esculhambação nacional.

Por falar em Aristides,  peço tão somente,  se possível, aos meus conscientes militantes progressistas, antifascistas, da Esquerda brasileira: por favor! Deixem o nome do meu bisavô em paz!

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