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12 de fevereiro de 2022
5min
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(Texto publicado em formato impresso em papel de jornal no ano de 2007 e ainda inédito nas redes)

Demorou, mas finalmente eu assisti ao filme Tropa de Elite. Esperei o feriado do dia 15 de Outubro, dia dos professores, e aproveitei a segunda feira sem aula para ir ao cinema. Depois de mais de duas horas de sessão voltei para casa esgotado. Precisei tomar quase um litro de chá de camomila para dormir e, de vez em quando, ainda hoje, um bom tempo depois, quando fecho os olhos, sou possuído por alguma das cenas do filme. Isso só prova uma coisa: o filme é muito bom. A interpretação de Wagner Moura é espantosa. É preciso ver esse filme umas dez vezes para se convencer que o jovem ator baiano possa ter posto algo fora do lugar na composição do seu personagem.

Fiquei curioso para assistir a película desde que um aluno do curso de Direito da FARN, que é policial, me disse: “professor, o Senhor já assistiu o filme do BOPE?”. Diante da minha negativa ele respondeu: “Pois veja, professor! Veja! Só de me lembrar desse filme eu me arrepio” e me mostrou o braço ouriçado como se tivesse sido atravessado por uma descarga elétrica. O que poderia fazer um policial, acostumado ao dia a dia profissional esgotante em uma capital brasileira, se arrepiar daquele jeito?

Muita gente apontou para a direita dizendo que o filme era comprometido. O diretor José Padilha apareceu em público para se defender. Apareceu gente dizendo que o filme apresentava vários aspectos do problema da violência urbana, e que as imagens e a narrativa desmontavam o discurso do Capitão Nascimento (personagem de Wagner Moura).

Pelo que eu entendi, o diretor tentou deixar claro que o discurso do protagonista do filme iria ser desmontado pelos fatos que cercavam o seu estado psicológico. Parecia que ele estava tentando fazer o que o cineasta russo Andrei Tarkovski fez em O Sacrifício, de 1986. Um descolamento ansioso entre as imagens que passam na tela e o discurso dos personagens. Mas não foi isso que eu vi. Me desculpe, amigo Padilha, mas eu vou ter que discordar de você. O discurso do capitão Nascimento no filme Tropa de Elite é o que condiciona a forma como as imagens são percebidas e o modo como a narrativa é captada. Não há dicotomia. Não há mal estar. Não há ambiguidade. Tropa de Elite não é o filme do BOPE. Tropa de Elite é o filme do Capitão Nascimento e de seu discurso fascista. Isso se dá devido a um fato simples: a força do narrador.

Por mais bem cuidada que seja a produção das imagens e o colorido violento da selva urbana do Rio de Janeiro; por melhor que seja construída a superposição de discursos, como os da ONG de estudantes universitários, o de Foucault expresso pelo policial que tenta virar advogado, o do policial corrupto e descrente com o sistema, o do traficante... todas essas falas são amarradas a partir da voz do Capitão Nascimento. Ele é o narrador daquela história, e quem faz literatura sabe, amigo velho, o narrador cria a realidade do texto. Por isso, dar voz a um narrador no cinema é uma atividade perigosa, ainda mais quando o narrador é um personagem.

Discordo de quem acredita que toda obra de arte tem um conteúdo político. Acho que existem filmes que não trazem nada de politicamente mais profundo (mesmo que hoje saiba que todo cinema é, de certa forma, ideológico). A questão é que o filme Tropa de Elite não é um desses. Comparando as cenas do treinamento militar do BOPE no filme, com as que um outro grande cineasta (olha só Padilha, com quem eu estou te medindo) Stanley Kubrick, em seu Full Metal Jacket, de 1987, pode-se compreender bem porque Tropa de Elite é tão polêmico.

Diante das crueldades do treinamento dos fuzileiros norte americanos no filme de Kubrick ficamos enjoados, abalados, chocados, nauseados com a brutalidade da guerra e entristecidos com o gênero humano. Diante do treinamento dos militares do BOPE no filme de Padilha, temos vontade de rir e saímos arrepiados, desejando loucamente comprar uma ponto quarenta e sair por ai caçando traficantes ou socando algum “maconheiro sem vergonha”. Repetimos o tempo todo “É assim mesmo. Tem que ser assim.”. Hoje, se alguém me perguntar sobre o filme, direi: o filme não é só de direita, não. O filme é fascista. Muito fascista. Quer tirar a prova? É só seguir o capitão.

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