Estátua de Iemanjá: precisamos ouvir nossos mais velhos
Natal, RN 18 de abr 2024

Estátua de Iemanjá: precisamos ouvir nossos mais velhos

3 de março de 2022
4min
Estátua de Iemanjá: precisamos ouvir nossos mais velhos

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É muito tentador achar que pintar de preto a estátua de Iemanjá é um caminho para avançar na luta antirracista. Afinal, Iemanjá é uma divindade africana e, como tal, é negra. Esse pensamento simplista fez com que houvesse uma onda de aprovação nas redes sociais ao vandalismo feito na estátua da Praia do Meio (Natal, RN).

Para começar, acho fundamental que a gente consiga entender que não existe UMA religião de matriz africana. Existem INÚMERAS, como a umbanda, o candomblé, o Tambor de Minas, os Xangô de Pernambuco, a Jurema do RN. E mesmo dentro de cada religiosidade dessa, há um mundo infinito de possibilidades de cultuar o sagrado negro.

Um segundo aspecto importante de se destacar é: a Estátua não esteve sempre lá. Ela é fruto da luta de muitas e muitos religiosos de matriz africana. A sua história está intimamente ligada com um desses segmentos listados acima: a umbanda. No bairro das Rocas, na Zona Leste de Natal, haviam importantes terreiros de umbanda que utilizavam também a praia como seu espaço sagrado, sobretudo no culto a rainha dos mares, Iemanjá. Como forma de demarcar esse lugar também como um território ancestral sagrado, os umbandistas decidiram colocar uma Estátua de Iemanjá na praia.

Não é coincidência ser uma estátua branca: para uma grande parte da umbanda (segmento esse que protagonizou essa luta), Iemanjá é representada por Nossa Senhora dos Navegantes. É inegável constatar que essa representação se dá como fruto do sincretismo religioso, imposta pelo cristianismo aos povos de matriz africana.

Mesmo assim, é com essa imagem que a gente se depara quando entra nos terreiros de umbanda e em grande parte dos de jurema. Não é simplesmente uma estátua para esses religiosos, é a materialização da orixá Iemanjá. É sagrado! E inegável dizer também que não é só para os religiosos que aquela estátua significa Iemanjá: os inúmeros ataques (tiros na cara, mãos decepadas, braços torados) sinalizam que a estátua, mesmo branca, é um símbolo da religiosidade afrobrasileira, e como tal, se torna alvo do racismo religioso.

Houve, há dois anos, um processo de renovação da Estátua, quando a Prefeitura de Natal comprou uma nova estátua e se comprometeu a ligar câmeras de segurança na área (que seguem desligadas até hoje). Esses mesmos mais velhos que botaram a primeira estátua foram consultados se a estátua deveria ser negra ou branca, e a resposta é simples: manter a identidade da estátua antiga significava manter a história e a memória dos umbandistas das Rocas viva.

Eu, como candomblecista, não cultuo aquela estátua como minha representação de Iemanjá. Inclusive, para o candomblé, as imagens têm pouco valor litúrgico. Inclusive, para mim, ela seria representada por uma mulher negra dos seios fartos, como é retratado nos itans yorubanos. Por isso, defendo, junto com boa parte dos mais velhos religiosos de matriz africana de Natal, que seja instalada na Redinha uma nova Estátua de Iemanjá, que represente também nós candomblecistas.

Em tempos de avanço da luta antirracista, nos falta ser mais sankofa: é preciso retomar o passado para entender onde estamos hoje e caminhar pra frente. Se hoje somos um estado com inúmeros terreiros (de candomblé, umbanda, Jurema, omoloko, entre outros), isso se deve aos que vieram antes de nós e fincaram a ancestralidade negra em nossas terras. Se hoje muitos jovens negros, assim como eu, podem viver a retomada a sua ancestralidade, isso se deve também a esses mesmos umbandistas que tiveram suas casas invadidas e, ainda assim, colocaram Iemanjá em uma das principais praias de Natal. Apagar a história dessa luta não nos serve.

Aos irmãos de matriz africana, que sigamos afirmando que Iemanjá é sim negra, para nós candomblecistas. Mas sem desrespeitar o sagrado dos irmãos da umbanda. E que, sobretudo, possamos ouvir nossos mais velhos. Afinal, só levanta para ensinar quem senta para aprender. E aos irmãos que são admiradores, que possam exercer mais o lugar da escuta: os povos tradicionais têm muito a dizer sobre sua história e suas lutas.

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