O acampamento de Jesus
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O acampamento de Jesus

27 de março de 2022
5min
O acampamento de Jesus

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(Texto publicado impresso em papel de jornal em 2010 e até agora inédito nas redes sociais)

No dia de Natal do ano de 1907 uma bandeira com a imagem da suástica apareceu tremulando na torre mais alta do castelo medieval de Werfenstein, na Áustria. A bandeira havia sido hasteada por Adolf Joseph Lanz, um monge cisterciense que por volta de 1890 passou a trabalhar na biblioteca da abadia beneditina de Lambach, onde, além de pesquisar manuscritos antigos, costumava dar aulas para crianças no colégio dos beneditinos.

Em 1900 Lanz largou o hábito de monge e fundou a Ordem do Novo Templo, inspirada na ordem dos templários. Nessa época fundou também a revista Ostara. Alguns anos depois, naquele 1907, impulsionado pelo sucesso dessa revista, publicou Teozoologia: Tratado sobre as criaturas de Sodoma e a eleição dos deuses - nesse livro Lanz defendia algumas teses alucinadas como a de que “o homem branco, germânico, era o verdadeiro filho de Deus” e escreveu coisas como: “Jovens e adultos alemães, vamos manter o grito de guerra de nossos ancestrais! (...) o globo terrestre é uma colônia da Germânia. Nós conquistaremos o mundo sob a aclamação dos homens de Deus liberados (...), sobre os antigos caminhos da guerra percorridos por nossos ancestrais vamos restabelecer a ordem entre esse bando de macacos briguentos!”.

Joseph Lanz bem que poderia ter entrado para a história como apenas mais um desses pirados que deliram em narrativas míticas megalomaníacas se, entre seus jovens alunos da escola católica de Lambach, não estivesse um garotinho chamado Adolf Hitler.

Só é possível especular o grau de influência de um professor como Lanz para a mente fértil de uma criança, mas o fato é que boa parte da alucinação coletiva em que a Alemanha caiu nos tempos sombrios do nazismo tem as marcas do tipo de ideologia mito poética que Lanz ensinava a suas crianças na Áustria.

É por isso que eu me arrepio sempre que lembro do que vi no filme Jesus Camp dirigido por Rachel Grady e Heidi Ewing. O filme é de 2006 e fala sobre um acampamento de verão para crianças em Dakota do Norte (EUA). O campo é coordenado por uma mulher chamada Becky Fisher e tem como objetivo fundamental preparar a “mais importante geração na história americana”. Ali as crianças oram e quebram xícaras em nome de Jesus para livrar o governo norte americano do Demônio e trazer a América de volta para Cristo. As crianças também ouvem sermões citando o aposto Paulo, conclamando-as para a guerra, e oram diante de uma imagem de papelão do presidente George W. Bush.

Becky Fisher entende que o que eles estão fazendo no acampamento não é muito diferente do que se faz em madrassas (escolas de estudos do Corão no Oriente) ou em escolas financiadas pelo pessoal do Hamas ou do Hezbolah, apenas, segundo ela, com uma diferença: eles (os mulçumanos) estão errados e “nós” (os cristãos) estamos certos.

A mãe de um dos alunos de Becky Fisher completa o raciocínio da diretora do acampamento dizendo: “Existem dois tipos de pessoas no mundo. As que amam Jesus e as que não”. Parece tediosamente desanimador pensar que após tantos milênios de história humana ainda nos deparemos com reduções desse tipo, mas existe muito mais gente no mundo que concorda com a máxima: “no mundo existem dois tipos de pessoas, as que concordam comigo e as equivocadas”.

Poderia ser engraçado o passeio pelo acampamento de Jesus, e realmente existem momentos hilários como quando Becky Fisher condena Hary Poter à morte por ser um bruxo. Mas não tem muita graça a conexão entre religião e política que a direita norte americana constrói a partir desses centros de doutrinamento de crianças. Especialmente quando a gente ouve um garoto de aproximadamente doze anos, como Levy, que quer ser pastor, e diz sem constrangimentos: “quando eu conheço alguém não cristão há sempre algo que não me parece correto... produz-me temor... uma sensação de asco, sabe?”.

É assustador imaginar que entre as crianças do Jesus Camp pode estar, por exemplo, o próximo presidente dos EUA, dono da chave do maior arsenal nuclear da Terra. Como o pequeno Adolf Hitler, ou o jovem Levy, corremos o risco de estar diante de um futuro sinistro, onde a medida das coisas seja tomada por alguma criança que aprendeu a acreditar fanaticamente que o mundo se divide entre aqueles que têm a verdade, e os equivocados (não importa quem sejam eles).

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