Quando o sapato arrebenta
Natal, RN 29 de mar 2024

Quando o sapato arrebenta

29 de março de 2022
4min
Quando o sapato arrebenta

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Serviço de transporte público de Natal caótico, para não dizer péssimo. Uma dúzia de livros lidos, outra dúzia de livros comprados (e ainda não lidos). Três doses de vacina. Seiscentas e cinquenta e oito mil, oitocentas e setenta e nove mortes pela Covid (é o que me informa o site do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, no momento em que escrevo esse texto). Uma guerra em curso, desde fevereiro de 2022, entre Rússia e Ucrânia, que revela (para poucos, eu sei) a crise estrutural do capitalismo e os caminhos tortuosos do imperialismo que, a todo custo e usando de todos os métodos, do consumo à guerra, devora nossas vidas. Um tapa na cara de um apresentador do Oscar 2022. E um sapato que arrebentou no meio do shopping, enquanto eu esperava a hora para entrar no teatro. Eis aqui um pequeno e rápido saldo do que estamos vivendo há pouco mais de dois anos, com a pandemia.

O isolamento acabou já faz tempo. Até mesmo as máscaras estão virando acessório cada vez mais descartado. A retomada da economia tomou seu curso e vem produzindo os mesmos efeitos de antes da pandemia, só que de uma maneira mais histriônica. Muitas vezes cheguei a pensar que, como sempre, a vida humana tem menos valor que os índices da bolsa, que o preço da gasolina e da carne no supermercado. Vocês já viram o preço da cenoura?

Ainda no início da pandemia, costumava ler o que os pensadores estavam falando sobre um vírus que modificou o planeta da noite para o dia. Menos carros nas ruas das grandes metrópoles, logo, menos poluição. Milhares de mortos em todo o mundo. Corrida dos cientistas para descobrir antídotos que pudessem combater a alta letalidade do vírus. Alguns deles falavam que a pandemia seria “didática” e que aprenderíamos com essa situação. Será?

O historiador e pensador israelense, Yuval Noah Harari, escreveu o ensaio Na Batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade (2020), publicado pela Companhia das Letras, no qual dizia que a crise aguda enfrentada pela humanidade não estava tão somente centrada no vírus, mas, também, pela falta de confiança entre os seres humanos. “Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar nos especialistas, os cidadãos precisam confiar nos poderes públicos e os países precisam confiar uns nos outros”, escreveu ele em determinado trecho. Certamente, quando ele pensou isso, não estava se inspirando no Brasil, nem no modelo de governo nacional que estamos enfrentando desde 2019. Embora não seja um movimento isolado, o Brasil guarda certas peculiaridades que, convenhamos, para sobreviver precisamos ser muito fortes.

De dois anos para cá, nossa saúde mental tem ficado tão comprometida quanto a saúde física. Alijados de referências simbólicas capazes de nos amparar e acolher nos nossos medos e fragilidades coletivas, o que vivenciamos foi um discurso negacionista que desuniu, dividiu e produziu afetos de ódio e ressentimento entre aqueles que tentam compreender que a vida tem um valor universal e aqueles que acham que o que vale é ter uma arma em punho para encarar uma discussão de trânsito. Aliás, vocês já repararam na violência difusa que, diariamente, nos apresentam nossos telejornais? Claro que isso não é de agora, mas atualmente, contribui sobremaneira para nossa patologia social: só assistimos violência e crimes, o que geram medo, revolta e que levam a mais violência, mais crimes, mais medo e mais audiência. Adoecidos, assustados, ansiosos e deprimidos, eis mais um saldo.

Estou há mais de dois anos saindo pouquíssimo de casa. Para mim não está sendo de todo ruim, consigo trabalhar e de quebra não tenho que encarar o desserviço obsceno do transporte público natalense, dentre outros ganhos. E, para finalizar, quero dizer que esse período me trouxe mais um ensinamento: a vida útil dos sapatos. Não importa se são velhos ou se estão novinhos. Sapatos precisam ser usados, senão se desgastam ainda mais. Foi o que aconteceu comigo semana passada no meio do shopping. Portanto, se algum vizinho meu estiver lendo esse meu artigo, aviso que vou aposentar as sandálias japonesas e se me virem por aí, levando o lixo para fora de botinha vermelha de cano curto, acreditem, são os efeitos da pandemia.

Sheyla de Azevedo é jornalista, psicanalista e mestranda de Ciências Sociais.

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