Escritas plurais: literatura e lugar de fala
Natal, RN 23 de abr 2024

Escritas plurais: literatura e lugar de fala

23 de abril de 2022
6min
Escritas plurais: literatura e lugar de fala

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Texto apresentado na live “Escritas plurais: lugares de fala e resistência”, do 1° Encontro do Mulherio das Letras Zila Mamede, ocorrida em 29, 30 e 31 de outubro de 2020

Aqui estou tentando responder onde me localizo nesses lugares políticos que refletem minha identidade. A primeira ideia que me ocorreu tem a ver com as origens: o Nordeste, particularmente, o litoral do Rio Grande do Norte, na zona urbana de Natal. Também, o sertão paraibano, de onde meus bisavós e avô vieram fugindo da seca, lugar que me atravessa por ter sido muitas vezes rememorado em conversas familiares.

As origens são perceptíveis nos meus escritos. O pertencimento a uma cultura, o afeto ao meu estado, aparece nas falas dos personagens, na culinária apresentada, na descrição das paisagens, na exposição dos fatos históricos. Esse é um primeiro lugar (social e geográfico) da minha identidade.

Aqui abro um parêntese para dizer que retratar o RN na minha literatura não foi um caminho natural. Por quê? A resposta passa pela formação do escritor, que para mim está profundamente vinculada às leituras que ele faz.

Comecei a ler muito cedo e li muito autores estrangeiros e de renome nacional. À exceção de Câmara Cascudo, os autores da terra me eram desconhecidos até dez anos atrás. E essa é uma questão que afirmo ser dramática em estados como o nosso, distantes dos grandes centros econômicos. Os escritores potiguares são desconhecidos em sua própria terra. Absorvemos a Europa, a América do Norte e até mesmo versões caricatas de nós mesmos através do olhar dos forasteiros, mas ignoramos, por razões econômicas e culturais, o que se escreve por aqui.

Descobrir a escrita local foi uma revelação: algo significativo foi iluminado e pude me reconhecer culturalmente. Passei a ler principalmente as mulheres que fizeram e fazem literatura no estado: Nízia Floresta, Auta de Souza, Palmyra Wanderley, Zila Mamede, Myriam Coelli, Madalena Antunes, Anchela Monte, Rosa Régis, Constância Lima Duarte, Andreia Braz, Clotilde Tavares, Jeanne Araújo, Ivaita Souza, Tereza Custódio, Araceli Sobreira e, mais recentemente, Paula Belmino, Iara Carvalho, Ana de Santana, Bia Crispim e Ana Paula Campos.

Foi por questões ideológicas que comecei a escrever sobre aquilo que era familiar, mais do que isso, aquilo que era sagrado para mim. Aquilo que eu podia evocar do passado ou tocar no presente. Refleti que minha terra precisava dessa representatividade.

A segunda identidade sobre a qual desejo falar é a de ser mulher. Escolhi colocá-la nessa ordem por causa de sua relação com a ancestralidade. Boa parte do que escrevo tem caráter memorialista. E essas memórias referem-se principalmente às mulheres da família. Isso não foi sempre assim, o primeiro livro que organizei e publiquei foi o do avô materno, orgulho da parentela por sua condição de erudito e poeta.

A certa altura da vida, observei que as mulheres da família seguiam, parafraseando Clarice Lispector em “A hora da estrela”, “uma oculta linha fatal”. Não era para a morte física, mas para a morte dos sonhos, que esse caminho seguia. Soterrados pela necessidade premente de viver pelos outros, de anular-se porque é isso o que se espera de uma mãe, esposa e filha.

Elas eram coadjuvantes em suas próprias histórias. Seus feitos nas artes da costura, do bordado, da confeitaria e da sobrevivência, eram considerados qualquer coisa entre o comum e o ordinário. Essa fatalidade, esse destino de apagamento, se apresentou a mim também como a boca aberta de um crocodilo. Fiz o que estava ao meu alcance: defendi-me com as teclas do notebook.

Encantadas pelas artes da escrita minhas ancestrais viraram heroínas: nasceu a destemida Joaquina das cabras; Joana, a guardiã da sagrada alma do mundo, a sereia Francisca; Maria, a menina de engenho lá do vale do Ceará-Mirim. O crocodilo fechou a boca. Mas continua lá, porque sou mulher.

Só consegui começar a produzir uma ficção distante dessa ancestralidade após honrar as antepassadas. Passei então a retratar as mulheres do mundo, as que estão aí tentando romper com as expectativas sociais sobre elas, em prol de ser e viver como desejarem.

A novela infantojuvenil “Deep Blue” traz a Safira, de 15 anos, e a dolorosa busca por se encontrar em uma sociedade hipócrita, violenta e tecnológica. Em “A casa de bonecas” trago minha primeira personagem trans. “A biblioteca da senhora M”, trata da violência doméstica e da sororidade entre as mulheres.

A terceira identidade ou terceiro lugar de fala tem a ver com a religiosidade que professei por muitos anos, atravessada pelo protestantismo dos pais e avós. No início, meus textos eram totalmente submetidos à doutrina aprendida ainda na infância; inclusive meus dois primeiros livros são, parafraseando a ministra Damares “terrivelmente cristãos”.

Esse “terrivelmente” hoje me dou conta, é totalmente adequado para caracterizar minhas primeiras publicações (e aqui confesso meu constrangimento), porque minhas histórias eram imbuídas de um cristianismo alienado e alienante, impositivo, muito interessado em formar adeptos e nada motivado a conversar com outras formas de religiosidade. “Aventuras de um adolescente cristão” e “Em um outubro rosa” têm seu valor e fazem parte da minha história, mas já não me representam como pessoa e escritora.

Rompi com as ideias de opressão e dominação que acompanhavam os sermões e o cotidiano relacional das igrejas onde congreguei e minha literatura hoje é reflexo disso. Em crônicas, manifestos e cartas abertas trato de assuntos que marcaram minha vida religiosa e afeta as vidas de outras mulheres cristãs. Virgindade, homofobia, subalternidade, ciência e violência de gênero são algumas das pautas sobre as quais levanto questões, por vezes incômodas.

Sigo nessa estrada, amando cada nova história que ela me inspira a produzir. Aprendendo nas interlocuções com outras escritoras, principalmente as do Mulherio das Letras, com quem tenho ótimas trocas.

Obrigada pelo convite e pela oportunidade de mostrar que aqui na nossa pequena e distante aldeia também fazemos da palavra, arte, resistência e mudança.

Ana Cláudia Trigueiro

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