Existe ciência nas leis brasileiras sobre o aborto?
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Existe ciência nas leis brasileiras sobre o aborto?

30 de junho de 2022
10min
Existe ciência nas leis brasileiras sobre o aborto?

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Progressos na legislação de países latinos e episódios de abusos à pacientes que passaram por violência sexual trouxeram a discussão à tona. Mas o que de ciência há no debate brasileiro sobre quando o embrião vira uma pessoa?

O debate sobre o aborto coloca geralmente em dois lados aqueles que defendem os direitos constitucionais das mulheres e aqueles que querem imputar ao embrião direitos de uma pessoa, um cidadão. Na prática, os profissionais que lidam com a questão, sejam da área de saúde, do judiciário ou do legislativo, precisam saber quando o embrião se torna uma pessoa para poderem tomar decisões adequadas. Mas a realidade não é bem assim, primeiro porque não existe consenso entre cientistas, religiosos ou qualquer outra ocupação social sobre quando a pessoa surge naquele grupo de células. Para ilustrar essa confusão, vou falar um pouco sobre a história de como se formou a nossa legislação sobre o assunto.

A preocupação em usar as leis sobre o aborto para criminalizar as mulheres nem sempre esteve presente. No código criminal do Império, de 1830, era considerado crime a indução de aborto por terceiros sem consentimento da grávida. Isso é, em relação a nossa história, a criminalização da grávida é uma ideia recente. Foi somente em 1890, no código penal republicano, que a grávida passou a ser criminalizada. Já na época, o aborto era legal caso ameaçasse a vida da mesma. A vida do embrião não tinha o mesmo valor.

Não sei bem de onde veio a ideia de que a vida do embrião é equivalente à vida de uma pessoa, como a grávida. Porém, ela se tornou famosa a partir da encíclica do Papa Pio XI chamada “Casti Connubii”, em 1930. Nela, o mesmo afirma que o aborto, em qualquer idade gestacional, é a retirada de uma vida inocente. Em 1940 então, temos a criação da lei 2848 que diz que o embrião é uma pessoa desde a sua concepção e é essa que regula o crime do aborto até hoje. Notem que a lei de 1940 em nada é baseada em ciência, mas sim na evolução do pensamento católico para a visão de que o embrião desde a fusão entre os dois gametas, ou desde o ato sexual, sabe lá, já é uma pessoa, dotada de personalidade, alma etc. Aqui se mantém a exceção à casos de risco à vida da mulher e são adicionados os casos de estupro.

Um detalhe importante sobre esse período da história é que fica bem claro que cristãos anteriores a esse período não pensavam assim. Compartilho com vocês um pedaço do voto do ministro Marco Aurélio Mello a respeito de uma ação direta de inconstitucionalidade que questionava o uso de células tronco humanas em pesquisa:

“...Os filósofos da antigüidade e Santo Agostinho revelaram ópticas diversas. Aqueles acreditavam que o embrião ou o feto não se mostrava formado senão após quarenta dias da concepção no caso masculino e entre oitenta e noventa dias no caso feminino. O pensamento de Aristóteles derivava da teoria dos três estágios da vida: vegetal, animal e racional. O estágio vegetal era alcançado na concepção, o animal na animação – quando incorporada a alma – e o racional logo após o nascimento com vida. Essa teoria passou a ser aceita pelos primeiros pensadores cristãos. O debate teológico refletiu-se nos escritos de Santo Agostinho, que traçava distinção entre embryo inanimatus, quando não presente a alma, e embryo animatus, portanto o já animado...”

Então, para certos pensadores cristãos o embrião se torna uma pessoa durante a gestação, e não desde o começo. Os santos doutores da igreja católica, Agostinho, Albertus Magnus e Thomás Aquino, concordavam que o embrião só passava a ser uma pessoa a partir de quarenta dias de gestação. Todos se baseavam em observações sobre a biologia do embrião, o que evoluiu muito desde então. É um mito a ideia de que a religiosidade é incompatível com a defesa do aborto e dos direitos constitucionais das mulheres.

A próxima exceção à regra de que o embrião já é uma pessoa no momento da fusão entre gametas surgiu por uma pressão tecnológica, não filosófica. Desde a década de 70, casais podem planejar a sua vida reprodutiva através de técnicas de reprodução assistida. Durante o uso dessas técnicas é gerado um excedente de embriões fertilizados que é congelado e nunca são injetados no útero da paciente. Após alguns anos, as clínicas podem descartar esse excedente. Assim, após o início do uso de técnicas de fertilização in vitro em humanos, passamos a considerar, juridicamente, que o embrião não é uma pessoa nos períodos anteriores à implantação. Essa ideia serve de suporte ao uso da pílula do dia seguinte, que diminui a possibilidade de o embrião encontrar uma decídua onde se implantar.

Na virada dos anos 2000, diversos grupos de pesquisa, no Brasil inclusive, estavam mostrando que o transplante de diferentes tipos de células tronco gerava uma melhor regeneração de tecidos que passaram por algum insulto, como corações infartados. Muitos desses ensaios utilizavam células tronco encontradas em adultos, como as da medula óssea, que gera nossas células de sangue. Obviamente, criou-se um interesse por estudar o uso de células tronco embrionárias humanas, por essas poderem dar origem a todos os tipos de células do nosso corpo. Na época, houve grande comoção, com participação de pacientes de doenças degenerativas inclusive, o que levou à aprovação da Lei da Biossegurança em março de 2005. Essa lei regulamentou o uso dos embriões excedentes provenientes de clínicas de reprodução assistida em pesquisa. Isso é, a ideia de que o embrião já é uma pessoa desde a célula original caducou. Mas caducou porque estava atendendo a interesses capitalistas de um setor que movimenta muito dinheiro. Não foi para proteger a mulher.

Qual é a grande diferença entre um embrião antes da implantação e depois? Após formada, a célula original, o zigoto, passa a duplicar o seu genoma e se dividir em duas células até atingir um estágio em que se parece com uma amora, um bolinho de células. Nesta fase, cada célula do bolinho tem o potencial de se dividir em todos os tipos celulares necessários para o nosso desenvolvimento. Logo após, estas células se dividem em duas populações: o trofoblasto, que são as células na face externa do embrião e que formam tecidos externos ao corpo, e a massa celular interna, que são as células tronco embrionárias, capazes de dar origem a todas as nossas células, como neurônios, sangue ou músculo. Nessa fase, o embrião se implanta no útero. Durante ela, no entanto, o embrião não é considerado um indivíduo. Isso porque tanto a massa celular interna como o trofoblasto podem se dividir em dois ou mais bolinhos e gerar gêmeos. Mais que isso, as células de dois embriões, gerados por dois diferentes zigotos, podem se misturar e gerar embriões com dois ou mais genomas.

Somente após a implantação acontece uma das fases mais importantes das nossas vidas, a gastrulação, já na terceira semana. Na gastrulação acontece a migração de parte das células do bolinho para dentro do mesmo. Esse movimento acaba dividindo o bolinho em um sanduiche de três camadas. As células da camada de fora se comprometem com a diferenciação de nosso sistema nervoso e pele. Já as que migram para dentro do bolinho, a camada do meio, se comprometem com a diferenciação de nosso sangue, músculos e ossos. A camada de dentro irá dar origem ao nosso sistema digestivo, pulmões, rins entre outros. Mas o mais importante dessa diferenciação é que o embrião não pode mais ser dividido em dois. Nós passamos a ser um indivíduo. Para muitos cientistas é na gástrulação que o embrião passa a ser uma pessoa, mas nenhuma legislação leva em conta essa hipótese.

Uma hipótese mais tardia para o início da pessoa foi sim considerada por nossas leis, a de que o embrião se torna uma pessoa a partir do início da atividade cerebral. De fato, a gravidez de embriões com uma malformação do sistema nervoso central anterior, chamada anencefalia, foi a última exceção adicionada à legislação que criminaliza o aborto. Essa aconteceu a partir da discussão de uma ação direta de preceito fundamental votada pelo STF em 2012. Com essa decisão, a corte determinou que um embrião sem cérebro não é uma pessoa, além de representar risco à vida da gestante. Será então que podemos expandir esta interpretação para embriões que não possuem atividade cerebral? De fato, a lei 9434, de 1997, regula que quando um paciente para de apresentar sinal no exame de eletroencefalograma o mesmo é considerado morto, mesmo que todas as células do resto do seu corpo estejam sendo mantidas vivas por aparelhos. O fim da atividade cerebral define que aquele corpo deixou de ser uma pessoa. Por uma questão de proporcionalidade, muitos cientistas consideram que o início da pessoa seria no início da atividade cerebral, o que aconteceria, bem lentamente, entre a 23ª e a 25ª semanas. No entanto, a possibilidade de estender a legalização do aborto até esse período não é considerada aqui, com a exceção de casos de estupro e ameaça à vida da mulher.

Como vimos ao longo do texto, não existe consenso entre cientistas sobre quando o embrião se torna uma pessoa. Qualquer estudioso dos fenômenos de desenvolvimento sabe que as estruturas do corpo e suas propriedades emergentes, como a respiração, a circulação e a visão, ou mesmo as características mais ligadas à humanidade, como a consciência e a personalidade, não se formam de uma hora para a outra, elas acontecem gradualmente. Como afirmou um dos maiores biólogos do século XX, Theodosius Dobzhansky, em 1976:

“O desejo sentido por muitas pessoas de apontar um estágio provavelmente tem origem na crença que a alma, concebida como uma entidade preternatural, descende sobre uma forma viva originalmente sem alma, e de repente transforma a última em um estado humano. Eu espero que teólogos modernos possam aceitar a ideia que a transformação não é repentina, mas gradual.”

É importante que todos nós pensemos, e baseados em informações precisas sobre o assunto, formemos opinião. Mas achar que a reposta que você encontrou deve ser aquela que todos devem assumir é um erro. A falta de consenso é uma característica da questão e é essa diversidade que faz com que nossas leis mudem. As mulheres e todos os demais envolvidos no aborto estão passando por conflitos de consciência. Do outro lado, aqueles que defendem o início da vida da pessoa no ato da concepção sabem que as duas vidas envolvidas não sofrem igualmente. Precisamos ter a humildade de reconhecer nossas fraquezas e reconhecer o sofrimento alheio, sem imposição. Só assim teremos um debate saudável como sociedade.

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