A elite do atraso
Natal, RN 29 de mar 2024

A elite do atraso

5 de julho de 2022
4min
A elite do atraso

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Causou espanto e indignação a muita gente, eu incluso, o artigo no jornal O Globo "O Rio de Janeiro continua lindo", de autoria do publicitário Washington Olivetto. Uma crônica aparentemente singela sobre seu filho adolescente que passa um fim de semana na Zona Sul do Rio, com amigos "e a babá que é quase da família" e ao final de programações típicas de quem tem o ´dinheiro de painho`, como se diz no Nordeste, ele aprendeu muito e "fez uma pós graduação da vida", nas palavras do papi orgulhoso e bem sucedido.

A crônica é um amontoado de clichês não apenas da Zona Sul carioca mas de um descolamento de mundo assustador. Olivetto parece não entender o caos em que o Rio se encontra, os problemas crônicos da cidade (mesmo em bairros da Zona Sul para além do Leblon têm muitos problemas) e tragédias como as chacinas quase semanais de pretos na periferia e nas favelas da "cidade maravilhosa". Claro que é pedir muito para alguém com tantos privilégios como Olivetto ter sensibilidade com algo além do seu umbigo e de sua prole, mas não precisava ele publicizar sua miopia social e alienação em espaço nobre na grande mídia.

A postura do publicitário me lembrou de frases infelizes da escritora e celebridade Danuza Leão, falecida há semanas, aos 88 anos. Sem querer falar mal dos mortos, o fato é que a partida de Danuza trouxe à tona o elitismo e o horror aos pobres que ela tinha. Chegou a escrever que "Paris não tem mais graça, existe a possibilidade de esbarrarmos com o porteiro do prédio". Uma elite, que como Paulo Guedes indignado com "as empregadas domésticas que até vão para a Disney", só consegue se divertir se as castas inferiores não se divertirem também.

Essas posições toscas me lembram o ótimo e necessário livro "A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato"!, do sociólogo Jessé Souza, lançado em 2017 mas que em 2019 ganhou uma edição revista e ampliada chamada "A Elite do Atraso: da Escravidão a Bolsonaro". Jessé explica historicamente como se formou essa elite brasileira tacanha e inculta. Recordo também que, em dezembro de 2018, Jessé Souza lançou em Natal ”A Classe Média no Espelho" no evento "Na trilha da democracia" realizado pelo ADURN-Sindicato, Sindipetro-RN e Cooperativa Cultural. Na palestra e no papo que depois bati com ele, previu que a ascensão de Bolsonaro ao poder faria a "elite" se sentir ainda mais empoderada para tratar as classes abaixo dela radicalmente como inferiores É o que está acontecendo.

Faço o registro que a "elite" natalense ainda me parece alguns degraus acima descolada da realidade e no nojo aos mais pobres. Entre outras razões porque a elite natalense, ao contrário da paulista e da pernambucana, por exemplo, de famílias realmente poderosas e centenárias, é feita de aparências, de dívidas bancárias e de sinecuras para manter o "padrão" que se consideram merecedores.

Que a derrota do bolsonarismo e a vitória de Lula marque um ponto de ruptura dessa institucionalização da "elite do atraso" que vimos acontecer, ainda que Bolsonaro em si não faça parte de nenhum tipo de elite, mas, acabou empoderando essa narrativa. Jessé, aliás, tem uma frase boa que refuta minha ideia sobre o ódio: "A elite brasileira não odeia os pobres, ela tem uma indiferença blasé, quer o dinheiro dela e pronto". É isso.

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