Gothardo Neto: uma vida de poesia
Natal, RN 23 de abr 2024

Gothardo Neto: uma vida de poesia

5 de julho de 2022
11min
Gothardo Neto: uma vida de poesia

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Por João Gothardo Dantas Emerenciano*

José Gothardo Emerenciano Neto nasceu em Natal, na antiga Rua da Palha (no trecho da atual Rua Gonçalves Ledo), numa casa vizinha ao antigo Teatro Santa Cruz, aos 24 de julho de 1881. Era filho do professor José Ildefonso Emerenciano (1845-1922) e de Inácia Florinda Emerenciano. Seu avô paterno, José Gothardo Emerenciano, velho mestre-escola, desasnou várias gerações de potiguares em meados do século XIX. Pela avó materna, Ana Vilela Cid, descendia de alguns Mártires de Uruassú, do célebre episódio de outubro de 1645.

Passou sua infância na Natal restrita aos primitivos bairros Cidade Alta e Ribeira, de poucas ruas calçadas e iluminação incipiente, onde existiam botequins feitos de palha de coqueiro vendendo gengibirra, capilé, doce seco e alfenim, o gozo da meninada daqueles tempos.

Depois de se alfabetizar com seu pai, o professor Zuza que tomara posse como professor municipal no ano de 1869, aposentando-se em 1908, ingressou no Atheneu Norte-rio-grandense, onde cursou humanidades, tendo sido excluído por “indisciplinado” no dia 28 de maio de 1899, juntamente com seu irmão Montano Emerenciano e o colega Teodorico Guilherme, voltando depois para concluir o curso secundário.

Na vetusta instituição de ensino, foram seus professores o Dr. Augusto Carlos de Melo L`Eraistre (Português); Dr.Hermógenes Machado Barbosa Tinôco (Francês); Odilon de Amorim Garcia (Inglês); João Tibúrcio da Cunha Pinheiro (Latim); Zózimo Platão de Oliveira Fernandes (Aritmética e Álgebra); Manoel Garcia (Geometria); Dr. Manoel Segundo Wanderley (Física, Química e História Natural); tendo sido contemporâneo, no referido estabelecimento de ensino, de Pedro e Adalberto Amorim, Antônio Soares, Virgílio Otávio Pacheco Dantas, Adalberto Peregrino da Rocha Fagundes, João Gualberto Machado Tinôco, Andronico Guerra, José Calazans de Brito Guerra, Uldarico Cavalcanti, Luís Petit, Cícero Moura, Tomaz Salustino, Pedro Melo, dentre outros.

Um fato pitoresco ocorrido nessa época se deu quando os estudantes resolveram homenagear o Dr. Pinto de Abreu, diretor da Instrução Pública, ofertando-lhe um presente no dia do seu aniversário. Ao chegar a vez de dar sua contribuição, escreveu apenas esta quadra:

Eu que a verdade não minto

                                   e que respeito o seu brilho

                                   pras festas do doutor Pinto,

                                   assino um litro de milho.

Único registro em imagem do poeta Gothardo Neto / foto: cedida

Iniciou, em companhia de alguns contemporâneos, a colaboração nos pequenos jornais lítero-trocistas, fundando O Éden (1897) em companhia de Pedro Mendes, além de colaborar em O Estudo (1898-99) e MiscelânIa (1898-99), do qual era secretário.

Tendo concluído os preparatórios e sem recursos para alcançar seu grande objetivo, o de cursar uma faculdade de Direito em outro estado, empregou-se na Capitania dos Portos, onde exerceu interinamente a secretaria, permanecendo provavelmente até o final de 1905, ano em que assinou edital da repartição, datado de 08 de fevereiro, intimando “os donos de currais de peixe a demoli-los o mais breve possível, correndo as despesas por conta dos mesmos”, em cumprimento do Decreto nº 4.817, de 08 de abril de 1903, de determinação do Sr. Vice-Almirante Ministro da Marinha.

Com o surgimento da Gazeta do Comércio em outubro de 1901, dirigido pelos jornalistas Pedro Avelino e Augusto Leite, foi convidado a fazer parte da equipe de revisão, tornando-se um dos principais colaboradores, escrevendo sonetos e, posteriormente, crônicas com os pseudônimos de Cláudio Marne e A. de Chartes, permanecendo no Jornal do qual se considerava um “filho espiritual” até o final do primeiro semestre de 1904, quando pediu demissão.

Concomitantemente à sua produção na Gazeta do Comércio, passou a colaborar em diversos órgãos, dirigindo O Álbum em 1902, que mantinha “redação e oficinas” em um imóvel localizado na esquina das ruas Cel. Cascudo e Voluntários da Pátria, no bairro Cidade Alta.

Por essa época, conheceu uma jovem de nome Maria Mercedes, oriunda do interior do estado, que residia na mesma rua do poeta, a rua 21 de março, atualmente denominada Gonçalves Lêdo. Abandonada pelo antigo “noivo” que a seduzira, Maria Mercedes tornou-se a musa cuja fonte de inspiração perene era marcadamente sentimental.

Profundamente apaixonado e recebendo pressões do meio provinciano que não aceitava seu relacionamento, passou a levar uma vida desregrada, pernoitando na casa da namorada depois do encerramento do trabalho noturno na Gazeta do Comércio, o que fez com que, muitas vezes, faltasse ao expediente da Capitania dos Portos na manhã seguinte.

Ivo Filho, jovem tipógrafo da Gazeta do Comércio, retratou a figura da companheira do poeta, no discurso de posse na Cadeira 24 da Academia Norte-rio-grandense de Letras, em 15 de julho de 1943: “Mercedes era, efetivamente, bonita, pois, o orador que vos fala a conheceu. Filha de pais pobres, nascida no interior do Estado, foi ela vítima das promessas de um D. Juan qualquer, pela beleza de que era dotada, e naufragou. Tinha uma estatura regular, donaire, no porte, e tez de um moreno róseo. Possuía cabelos pretos; olhos rasgados e negros; boca pequenina, onde eram engastados dois colares de pérolas alvíssimas, encobertos por uns lábios húmidos e vermelhos, sem os arrebiques do batom, que, naquela época, era um elemento de beleza desconhecido. Possuía espáduas largas, seios protuberantes, cintura fina, e suas pernas, conquanto, dificilmente, vistas, porque a moda era de vestidos compridos, tinham contornos maravilhosos”.

Atendendo a constantes apelos da família e dos amigos do poeta, Maria Mercedes o abandonou no dia 14 de fevereiro de 1903, levando-o a uma profunda mágoa que o fez refugiar-se no álcool, o que o fez adoecer seriamente em 1908. Nesse mesmo ano, foi convidado a exercer a função de redator cultural do jornal A Capital, fundado naquele ano por Juvenal Antunes, Galdino Lima e Honório Carrilho, jornal no qual colaborou ativamente.

No dia 12 de fevereiro de 1903, em sessão ordinária do “Grêmio Le Monde Marche”, foi aceito sócio efetivo juntamente com João Gualberto Machado Tinôco e Barôncio Guerra.

Sua primeira colaboração no Oásis, órgão do Grêmio, foi a crônica Saudações, em que comenta o oitavo aniversário da agremiação literária, publicado em 9 de setembro de 1902. Depois, publicou o soneto Meu Livro, no número 2 da revista (fevereiro), seguido do artigo Movimento Literário, no número 3 (março), encerrando sua participação no número 4, de abril de 1903, com o soneto Sempre!, até ser eliminado da classe de sócio efetivo juntamente com Pedro Amorim, incursos no artigo 43 dos estatutos da agremiação, após sessão extraordinária realizada no dia 20 de junho de 1904, sob presidência de Alfredo Carvalho, cujo teor da reunião foi publicado no número 6, junho do mesmo ano.

Depois da sua saída da Gazeta do Comércio e do “Le Monde Marche”, entrou em um processo de apatia só interrompida quando assumiu em julho de 1908 a direção do quinzenário O Potiguar, órgão da “Oficina Literária Lourival Açucena”, tendo como secretário Ferreira Itajubá, além de contar na redação com seu irmão Antônio Emerenciano, Ivo Filho, Jorge Fernandes, Angione Costa, Ponciano Barbosa, João Estevão Gomes da Costa, Josué Silva, dentre outros.

No mês de dezembro de 1909, foi agraciado com o diploma de sócio honorário da Sociedade Recreativa Divisão Branca, fundada no ano anterior, assumindo a direção de O Torpedo, órgão da agremiação, em substituição ao poeta Ferreira Itajubá, principal animador do “Gracioso Ramalhete”. A exemplo do seu antecessor, que escrevia assinando com o pseudônimo Stela Romariz, utilizava o pseudônimo feminino de Elisa Bastos.

Já abalado pela doença e sem sair de casa, recebia diariamente os sócios da “Oficina” deitado numa rede armada na sala da frente de sua casa, onde balançava-se puxando por um cordel. Ali era escolhido o material a ser publicado no Jornal O Potiguar, transformado em revista Potiguar a partir de janeiro de 1910 e sendo distribuída mensalmente.

No período de 1901 a 1911, colaborou em diversos órgãos, destacando-se A República, A Capital, Gazeta do Comércio, O Potiguar, O Potengi, A Tribuna, Oásis, O Torpedo, O Trabalho, O Sertão, Pax, Almanaque de Macau, A Rua – escrevendo com o pseudônimo Pantaleão Bodoque – e O Arurau, no qual mantinha, com o pseudônimo Zé Fidelis, “uma seção denominada Semana em Ceroula, “alfinetando”, de vez em quando, o seu amigo Ferreira Itajubá, que “indignado” se dirigia à residência do poeta e, ao defrontá-lo, tinha invariavelmente esta exclamação:

– Mas Seu Gothardo! ... Como é que você me espinafra assim (ele empregava outro verbo que não pode ser escrito) assim?

Rindo, sem mais se alterar, respondia o interpelado:

– Não foi nada, caboclo, foi em confiança, foi em confiança. O velho foi ao mercado comprar peixe para almoçarmos.

Cessava o incidente até nova piada. Iam ler versos, molhar o bico enquanto não chegava a hora da refeição. “Nunca houve entre os dois a menor rusga", revela o professor Celestino Câmara, em discurso proferido na Academia Norte-rio-grandense de Letras, publicado no primeiro número da revista da Instituição.

Apesar de dirigir dois periódicos – Potiguar e O Sertão – sem sair de dentro da sua rede, vivenciava um intenso cenobitismo, provocado pelo isolamento voluntário e sofrimentos da doença. Veio a falecer no dia 7 de maio de 1911, às 14:30 horas, sendo sepultado no cemitério do Alecrim às 7 horas do dia seguinte com grande acompanhamento. O Dr. Raul Fernandes, que atestou o óbito, diagnosticou lesão cardíaca para a causa da morte.

A banda de música do Batalhão de Segurança foi cedida pelo comandante Lins Caldas, executando uma marcha composta pelo maestro José Borrajo, tendo discursado no cemitério os Srs. Ivo Filho, pela “Oficina”, Manuel Seabra, pelo “Grêmio Augusto Severo” e Dioclécio Duarte, pelo “Centro Acadêmico”.

Dois anos após a sua morte, os sócios da “Oficina Literária Lourival Açucena” organizaram o livro Folhas Mortas, publicado pelo governo do estado na administração de Alberto Maranhão, por meio dos incentivos da Lei nº 145, de 06 de agosto de 1900; servindo o resultado da sua venda para a construção do seu túmulo “com um serafim de mármore chorando”, como pedira ele no soneto Minha Campa.

Várias das suas composições foram posteriormente musicadas, destacando-se Ao Luar e Canção, por Olímpio Batista Filho; Ária Tristonha e Palavras de um Trovador, por Heronides França; Papoula e Versos d’alma, por Deolindo Lima e Virgílio Carneiro, respectivamente.

Em 1935, um grupo de jovens fundou o “Grêmio Literário Gothardo Neto”, que editou durante algum tempo os periódicos – Grêmio e Potiguarânia – dirigidos por João Seabra de Melo, Hélio Galvão, Aluízio Alves, Antônio Soares Filho, Raimundo Nonato Fernandes, I. Bolshaw, Ascendino Almeida Júnior, Anastácio Silva e Arnaldo Nolasco.

Com a fundação da Academia Norte-rio-grandense de Letras, em agosto de 1936, foi escolhido Patrono da Cadeira nº 24, ocupada incialmente por Ivo Filho, seguido de Antídio de Azevedo, e que tem como atual ocupante a ensaísta e poetisa Sônia Fernandes Ferreira.

Em 2017, foi publicado o livro “Movimento Literário” reunindo artigos e crônicas, publicação de O Potiguar, organizado por João Gothardo Dantas Emerenciano, que acrescentou notas aos textos e fez a apresentação.

* João Gothardo Dantas Emerenciano é jornalista

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