Deus foi tirar um cochilo
Natal, RN 24 de abr 2024

Deus foi tirar um cochilo

4 de agosto de 2022
4min
Deus foi tirar um cochilo

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Há muitos anos eu vinha esperando esse momento. Vez por outra, eu lembrava desta graphic novel que perdi e nunca mais consegui achar, ou quando achava não tinha dinheiro para comprar. A primeira vez que folheei Moonshadow, escrita por J.M. DeMatteis, ilustrada por Jon Muth, foi há mais de 30 anos. Era uma novela gráfica de fôlego, fora lançada em doze edições em 1985, e meu amigo de Winston Churchill, agora jornalista e escritor, Itaércio Porpino me apresentou nos corredores da escola. E sob fortes recomendações de muito zelo e cuidado, me deixou levar para casa, emprestada. Foi um final de semana incrível, debruçada sobre aquela história surreal, cheia de referências de grandes escritores – que eu ainda não tinha lido – e com ilustrações que me tiravam do universo do traço chapado das histórias em quadrinho que estava acostumada, para a sensação de que meus olhos passeavam por uma longa obra de arte.

Por esses dias encontrei uma edição de capa dura desse romance e não resisti. Com ela em mãos, me deparo com a apresentação de DeMatteis, na qual ele revela que até chegar a fazer Moonshadow, experimentava fazer trabalhos em que clonava outras vozes de grandes roteiristas como Stan Lee, Steve Gerber, Roy Thomas, dentre outros. Até chegar nessa obra. E aí solta essa: “Alguém (por mais que eu tente, não consigo lembrar quem) disse que a história na qual você está trabalhando neste momento devia ser a única que vai escrever na vida: jogue ali tudo que pensa, tudo que sente, suas ideias e seus ideais, suas paixões e filosofias, seus sonhos e suas esperanças. Despeje ali cada gotinha da Pessoa Que Você É”. E foi assim, que ele encontrou a sua própria voz nos quadrinhos.

E lendo aquilo, fiquei pensando sobre essas apostas altas que fazemos na vida, como se a vida fosse mesmo só agora. Não é sempre que conseguimos, claro. Mas, quando nos atiramos por inteiro e sem reservas, acreditando que esse movimento é capaz de fazer a “roda girar” - nem que seja somente em nossa órbita interna - essa coreografia de ideias, pensamentos, sentimentos e sensações realmente fazem muito sentido. Nem que seja por um período, um pequeno momento, feito de agoras e de mapas invisíveis na palma da mão que vão nos fazendo percorrer o caminho, inteiros, verdadeiros, vivos.

Por um tempo, nessa pandemia, senti que essa percepção estava mais constante na vida das pessoas. Na minha vida. Como se pensássemos em uníssono: precisamos viver agora, porque temos uma ameaça vindo em nossa direção. Nem que esse “viver” no confinamento significasse apenas observar o comportamento silencioso das plantas, o sabor de carvalho e mel numa taça de vinho, a textura molhada e granulosa de um pedaço de pera na boca, o cheiro das roupas no varal. Eu tenho uma planta aqui em casa que todas as vezes em que eu a rego, ela se manifesta. Ela está lá quietinha e borrifo por alguns segundos uma pequena chuva de atenção e ela me retribui rigorosamente com um cheiro agradável de flor. E, se eu não estiver atenta ao que estou fazendo, posso não receber esse carinho. Desde que compreendi esse gesto silencioso dela comigo, despejo ali cada gotinha da pessoa que eu sou e não me absorvo ou me distraio em outros devires.

Agora mesmo por exemplo, enquanto escrevo, luto para não negar nenhuma parte de mim nesse exercício. Estou aqui porque quero estar e porque preciso. E quando não há mais essa consciência da responsabilidade que temos dentro de nós – dentro dessa grade física que nos circunda a alma - e no compromisso, na mesma medida, que precisamos ter com o outro, nos distraímos, nos mecanizamos e, pior, nos embrutecemos. E isso eu não quero para mim. A pandemia não passou. A ameaça parece menos evidente e temos nos tornado os displicentes, descuidados, alheios de sempre. Até o ato de lavar as mãos constantemente está esquecido. E diante de tudo que a gente tem passado, eu tenho pensado que Deus deve estar bastante cansado da humanidade e se retirou para tirar um cochilo. Então, na ausência desse “senhor dos destinos”, cuidemos uns dos outros.

P.S.: esse texto é dedicado à preciosa atenção e ao cuidado dos meus amigos e amigas.

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