UFRN já barrou 569 alunos na matrícula por fraude às cotas; 11 foram desligados durante o curso
Natal, RN 25 de abr 2024

UFRN já barrou 569 alunos na matrícula por fraude às cotas; 11 foram desligados durante o curso

30 de agosto de 2022
9min
UFRN já barrou 569 alunos na matrícula por fraude às cotas; 11 foram desligados durante o curso

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Desde que a UFRN adotou as bancas de heteroidentificação para avaliar os alunos que ingressaram no Sisu por meio de cotas raciais, 569 estudantes já tiveram suas matrículas negadas na universidade, antes mesmo de conseguirem entrar. Outros 11, que já estavam matriculados antes da instauração das bancas, foram desligados depois que foram denunciados na Ouvidoria da instituição e reprovados na avaliação dos membros da banca. Destes, dois conseguiram retornar à universidade por meio de decisões judiciais. Esta matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o aniversário da Lei de Cotas, que a Agência Saiba Mais iniciou nesta segunda-feira (29). As publicações abordarão o impacto dessa política no ensino superior do Rio Grande do Norte.

A banda de heteroidentificação começou a funcionar na UFRN a partir do Sisu 2021. No ano anterior, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) da UFRN aprovou, em setembro, os procedimentos de heteroidentificação nos processos seletivos para cursos técnicos de nível médio, de graduação e de pós-graduação. Desde então, para ingressar via Sisu, os candidatos autodeclarados pretos ou pardos devem enviar um vídeo individual, que é analisado por uma banca composta por três membros.

Essas bancas de heteroidentificação são formadas por integrantes da Comissão de Heteroidentificação, composta por servidores e estudantes da UFRN que passaram por capacitação para participar das bancas nos processos seletivos da Universidade, assim como na avaliação de denúncias realizadas à Ouvidoria da UFRN. Nesse último caso, a unidade acadêmica responsável abre um processo investigativo e cria uma comissão específica para esse fim, que pode solicitar a submissão do estudante a uma banca de heteroidentificação.

No Sisu de 2021, houve o total de 2.967 candidatos analisados e, destes, o parecer foi desfavorável para 219 pessoas. No Sisu 2022, foram emitidos 350 pareceres desfavoráveis entre os 2.790 candidatos analisados.

Decisões judiciais

Entre os 11 alunos que já estavam cursando e foram jubilados, havia estudantes de medicina, enfermagem, química do petróleo, química, odontologia e direito, segundo a assessoria da Reitoria. A UFRN não repassou os nomes desses desligados por fraude, e disse que só seria possível por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Mas a Agência Saiba Mais teve acesso aos nomes completos de três alunos, e verificou os processos no Sistema Integrado de Patrimônio, Administração e Contratos (SIPAC).

As duas pessoas que retornaram às aulas por meio de decisões judiciais são alunos de Medicina e recorreram à Justiça para ativar novamente o vínculo com a universidade. Uma delas ingressou em Medicina no segundo semestre de 2020, utilizando a cota classificada como “L2”, para egressos de escola pública, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salários-mínimos, e que são autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Antes, ela já havia entrado em Enfermagem com a mesma cota.

Dez meses depois do início das aulas, a estudante recebeu uma denúncia anônima na Ouvidoria da UFRN e passou por duas bancas de heteroidentificação racial, em 22/10/20 e 26/11/2020, conforme relatado no processo enviado à 5ª Vara da Justiça Federal do Rio Grande do Norte. Ambas concluíram que a mulher “não possuía características fenotípicas necessárias”. 

Ela apresentou uma defesa e continuou frequentando as aulas enquanto o processo administrativo tramitava. Já em 3 de junho de 2022, ao tentar entrar no sistema de gestão acadêmica, chamado de SIGAA, “foi surpreendida com a informação do cancelamento da matrícula no curso de medicina”. Na ação cível para retomar o vínculo, a defesa ainda informou que a “UFRN não comunicou expressamente e muito menos previamente sobre a possibilidade de cancelamento da matrícula da autora”. 

A juíza Moniky Mayara Costa Fonsêca Dantas acolheu o pedido de reativação da matrícula. Segundo a magistrada, “a conclusão da comissão avaliadora goza de presunção de veracidade”, mas ela observou “que a conclusão da banca e exclusão da autora ocorreram um ano e meio após o ingresso da autora no curso de Medicina da UFRN” e questionou as “justificativas genéricas” dadas pela banca à estudante como motivos para deferir o pedido da aluna.

Em outro processo do mesmo tipo, um aluno também de Medicina e que havia entrado na mesma cota, a L2, recebeu a denúncia anônima na Ouvidoria e foi reprovado após a banca emitir um “parecer contrário à presença de características físicas do interessado (predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e os aspectos faciais, que, combinados ou não permitirão confirmar a autodeclaração)”. 

Desta vez, o juíz responsável foi Magnus Augusto Costa Delgado, da 1ª Vara. Na decisão, o magistrado reconheceu a possibilidade de exclusão por fraude às cotas mesmo antes do início oficial da banca de heteroidentificação, que ocorreu somente no segundo. Essa possibilidade já era prevista no edital do Sisu 2020, que aponta que “a qualquer tempo, caso haja denúncia contra a utilização das ações afirmativas, o candidato ou aluno, poderá ser convocado para entrevista por Comissão constituída pela UFRN exclusivamente para este fim”.

Entretanto, afirmou que “apenas depois de alguns semestres em que a parte postulante está cursando medicina, é que vem a universidade alegar que ela não preenche os requisitos para a vaga de cotas, não se reputa razoável permitir uma avaliação de heteroidentificação após o ingresso do estudante no curso superior, para desclassificá-lo sob entendimento de que ele não preenche os requisitos para ser aceito no sistema de cotas, sob pena de afronta ao princípio da segurança jurídica”.

De acordo com José Josemar de Oliveira Júnior, diretor de Administração e Controle Acadêmico da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da UFRN, os processos relativos a 2020 enfrentaram uma demora já que, segundo ele, a regulamentação da Comissão de Heteroidentificação não estava totalmente formalizada naquele ano.

“Os processos ficaram em stand-by de certa forma, porque o processo ainda não estava definido, a comissão instituída, os elementos, etc. Quando a comissão foi constituída se deu andamento aos processos, e até por isso que acabou demorando mais do que o esperado para um processo dessa natureza”, afirmou. “Mas a partir de agora a gente já tem um trâmite específico e nem tem acatado mais as denúncias se forem dessa natureza [recebidas na Ouvidoria], porque já tem o processo de heteroidentificação”, reconheceu.

Critérios

Nos editais da UFRN, desde 2020, consta os critérios físicos para que um ingressante possa ser considerado negro ou pardo. A instituição considera “o conjunto de características físicas do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e os aspectos faciais, que, combinados ou não, permitirão confirmar a autodeclaração”. Entre os processos dos alunos vistos pela Agência Saiba Mais, um citava a “mistura de raças” que fez a pessoa se identificar como parda, tendo um pai negro e uma mãe parda. Nos editais, entretanto, a própria universidade veda a descendência como motivo para alguém pertencer às cotas.

“Será considerado, exclusivamente, o aspecto fenotípico, sendo excluído o fator genotípico do candidato ou fenotípico dos parentes, para aferição da condição autodeclarada pelo candidato beneficiário da ação afirmativa de critério étnico-racial”, diz um trecho do documento.

Utilizar somente autodeclaração se mostrou insuficiente, diz pesquisadora da UFRN

Para a assistente social da UFRN, Daiane Daine, as bancas passam por um processo constante de aprimoramento e “foi uma das melhores estratégias pensadas até então”. Ela, porém, diz que o entendimento inicial, a partir da instalação das cotas em 2012, era de que apenas o uso da autodeclaração seria suficiente para colocar pessoas negras e indígenas nas universidades. 

“Mas se a gente para pra olhar as denúncias de fraude, as tentativas de fraudes, e para pra analisar também a discussão sobre as relações etnico-raciais e o silenciamento em torno desse pertencimento racial da população negra no Brasil, a gente vê como isso ainda é uma problemática, então se utilizar somente da autodeclaração se mostrou insuficiente”, aponta. Segundo Daiane, as bancas de heteroidentificação são necessárias para efetivar a política de cotas, mas também é preciso “impedir as fraudes e acima de tudo garantir que quem é beneficiário realmente acesse essas vagas”.

Segundo a pesquisadora, que também integra o Laboratório de estudos e pesquisas em Afrobrasilidades, gênero e família (NUAFRO) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), o grande prejuízo com as tentativas de burlar o processo é o ingresso indevido de pessoas lidas socialmente e racialmente como brancas. 

“Se a gente coloca no papel, abre as vagas, mas no momento de ingresso continuam entrando as mesmas pessoas, e as pessoas pra quem elas se destinam não conseguem, de fato, alcançar, porque outras pessoas que não seriam beneficiadas estão se utilizando disso, a gente não alcança o objetivo maior que é essa democratização e diversidade como se espera”, afirma.

“E isso traz consequências ainda maiores a longo prazo, de não termos também mudanças nesse acesso ao trabalho, no desenvolvimento de pesquisas e de estudos dentro da universidade por esse público, nas mudanças sociais e de lugares sociais, no combate ao racismo que a gente tanto espera que a gente consiga alcançar a longo prazo”, exemplifica.

Ainda para Daiane, as comissões nas universidades têm trazido um “incômodo”. “Esse incômodo é necessário porque faz com que as pessoas parem para refletir sobre o processo em si, sobre porque que a gente precisa de procedimento de heteroidentificação, para quem se destina essa política pública. E quem se inscreve se questiona: ‘será que eu tenho esse perfil?’”.

Ela também acha natural que o número de falsas autodeclarações diminuam com o tempo a partir de discussões sobre “quem sofre racismo no Brasil, como ocorre, para quem são e porque existem as políticas de cotas”, comenta. “A partir do momento que a gente amplia essa discussão, aí sim eu acredito que a gente consegue ter uma redução considerável dessas autodeclarações que não são validadas”.

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