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MP ignora denúncia de “tortura” em inquérito da Polícia Civil e aponta “lesão de natureza leve” em caso de quilombola espancado no RN
26 de setembro de 2022
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No entendimento do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), a agressão sofrida em setembro de 2021 por Luciano Simplício, um homem negro e descendente de quilombolas que foi amarrado e agredido por um comerciante do município de Portalegre, no interior do RN, foi um caso de lesão corporal de natureza leve (artigo 129 do Código Penal) e não de tortura, como apontou o inquérito entregue pela Polícia Civil ao MPRN.
Pelo Código Penal, o crime de lesão corporal sem agravantes prevê penalidade de três meses a um ano de detenção. Porém, nos casos em que a pena é inferior a dois anos, os Juizados Especiais costumam realizar acordos, como a distribuição de cestas básicas e prestação de serviços à comunidade. Com isso, se a decisão for mantida, os acusados não chegarão a ser presos.
A denúncia de lesão corporal foi apresentada pelo Ministério Público ao juiz de Direito Uedson Uchôa, que acatou a avaliação do promotor Rodrigo Pessoa de Morais e direcionou o caso para a competência do Juizado Especial Criminal da Comarca de Portalegre.
Os advogados da vítima ainda não foram notificados da decisão do juiz, mas à Agência Saiba Mais, adiantaram que vão recorrer da decisão. Eles apontam que tanto o promotor de Justiça, quanto o juiz de Direito que avaliou o caso, ignorou o relatório elaborado pela Polícia Civil, responsável pela investigação. No documento, é denunciada a prática do crime de tortura contra Luciano Simplício.
“Ainda vamos avaliar qual será a melhor estratégia a ser adotada, mas com certeza vamos recorrer porque o inquérito foi robusto, com as provas e testemunhas que relataram o açoite em praça pública. A tortura está caracterizada e ainda é agravada pelo racismo”, aponta Hélio Miguel, um dos advogados da vítima.
Os acusados foram identificados como o comerciante Alberan Freitas e o servidor público de Viçosa, André Barbosa. Os dois até chegaram a ser presos durante as investigações, mas foram soltos em pouco tempo. Segundo a vítima, André Barbosa o segurou para que Alberan pegasse uma corda, com a qual foi amarrado, e lhe desse um chute nos órgãos genitais.
Na época, o vídeo em que Alberan aparece pisando no corpo de Luciano, amarrado e ao chão, viralizou nas redes sociais pela barbárie que a cena representa. Várias pessoas associaram a imagem aos tempos da escravidão.
“Lamentamos a postura refratária diante de uma situação tão negativa para o estado e que teve repercussão nacional. Entendemos que nas instâncias superiores isso será melhor avaliado”, pondera Daniel Pessoa, advogado da vítima e professor de Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).
Os advogados da vítima haviam entrado com um pedido, antes da audiência, para que a denúncia apresentada pelo Ministério Público do RN fosse modificada para crime de tortura, presente apenas no inquérito da Polícia Civil. Porém, a solicitação não foi atendida.
“Temos o entendimento de que o que precisa ser avaliado é, exatamente, sobre os fatos remeterem a uma conduta que se enquadraria como tortura-castigo e tortura-racismo. Vamos recorrer para que o juiz possa explicar por quais razões ele não avaliou nosso requerimento. Depois disso vamos remeter o caso, provavelmente, ao Tribunal de Justiça”, adianta Daniel Pessoa que, juntamente com Hélio Miguel, fazem parte do Projeto de extensão da Ufersa, Escritório Popular Paulo Freire, que garantiu à vítima o acompanhamento jurídico do processo.
Mercadinho de Alberlan[/caption]
As agressões teriam ocorrido porque Luciano, depois de ser xingado de vagabundo e drogado ao pedir um pedaço de carne pela segunda vez a Alberlan e André (a vítima foi atendida quando pediu pela 1ª vez), ameaçou ir até o mercadinho de propriedade do comerciante jogar uma pedra. A partir daí, ele foi seguido pelos dois amigos, depois foi amarrado e espancado por Alberlan.
Após a repercussão nacional do caso, a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra determinou apuração rigorosa do crime. Outras personalidades políticas também se manifestaram diante do fato.
Alberan Freitas I Foto: reprodução Mossoró Hoje[/caption]
Relembre o caso:
O comerciante bolsonarista Alberan de Freitas Epifânio, de 52 anos, é acusado de ter espancado no meio da rua, com a ajuda do servidor público de Viçosa, André Barbosa, Luciano Simplício, um homem negro e descendente de quilombolas, de 22 anos. O fato aconteceu em setembro de 2021, no município de Portalegre, distante 370 quilômetros de Natal (RN). [caption id="attachment_67296" align="alignright" width="300"]
"Nego safado"
Alberlan já respondia a um processo penal por injúria. Na denúncia, datada de junho de 2020 e assinada pela promotora de Justiça Patrícia Nunes Martins, lê-se que, numa discussão, Alberan de Freitas chamou Saulo Mikael Vieira Rocha de “nego safado”, “nego buceta”, “você é um nego bosta” e ainda “suma do meu comércio que nem de nego eu gosto”. O episódio foi testemunhado por duas pessoas e ocorreu depois da vítima fazer uma reclamação sobre a placa de um veículo. A conduta de Alberan de Freitas foi tipificada no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal: Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:- 3 o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
