Oração para a primavera
Natal, RN 29 de mar 2024

Oração para a primavera

26 de setembro de 2022
4min
Oração para a primavera

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Por Sheyla de Azevedo

Sei que assim como eu, muitos de nós estamos preocupados, ansiosos, tensos com o que acontecerá nessa primavera de 2022. Oficialmente, ela começou dia 22 de setembro. Mas, para mim, ainda é difícil me distrair com as cores que essa estação evoca. É como se estivéssemos no meio da travessia de uma tenebrosa ponte. Não dá para ficar no meio de uma ponte indefinidamente. Uma hora ou outra é preciso seguir. Próximo domingo será fundamental para essa caminhada. Até lá, minha angústia atual só se compara com o que senti nas eleições de 2018, que deram a largada que nos levou para essa ponte maldita. Acontece que não sabemos qual a aurora que nos espera adiante. Se ainda seremos obrigados a seguirmos trôpegos vendo nossos sonhos esmagados por um passado que insiste em voltar.

E sei também que pouquíssimas pessoas não encararam os abismos que essa travessia tem nos levado. E mesmo que o neguem, para aquelas que parecem alheias, ainda assim é possível ver o abismo dentro delas: de pilotar moto sem capacete a dar tiros em adversários políticos. De se alimentar com café, pão e falsas notícias de manhã à noite. De evocar um deus da guerra, seletivo e punitivo. Ou o abismo dos isentões que resolveram “customizar” a palavra polarização entre direita e esquerda. Como se fosse possível comparar obscurantismos, orçamento secreto, milicianos no poder, compra de imóveis com dinheiro vivo, misoginia, evocação da ditadura militar; negação e procrastinação na compra de vacinas durante a pandemia que matou quase 700 mil pessoas no país, fome, desemprego e violência com o lavajatismo, a esquerda caviar e o “lulopetismo”, narrativas de terceira via - e de quinta categoria - que só não me dão mais preguiça por que estou preocupada demais com o tempo que podemos perder flertando com esse abismo.

Portanto, pessoas queridas que por acaso passearem os olhos por aqui, queria ser capaz de escrever um poema que falasse de compreensão, perdão, união, fraternidade e amor. Um poema que pudesse servir não para nos distrair, mas para nos ajudar a dar um outro sentido para o que tem nos causado essas dores e essa solidão silenciosa de não conseguir colocar nossos sonhos dentro de um futuro que tudo comporta. De modo que, na minha incapacidade confessa de escrever poemas, deixo aqui um arremedo de oração. Dois pontos.

Quando a primavera chegar eu vou tirar do armário aquele vestido amarelo que convida o sol a sorrir. Vou caminhar pelas ruas como uma criança: andar perdida nelas, prestar mais atenção em coisas importantíssimas como as chananas espremidas nas frestas das pedras; no balé ao vento dos pedaços de papel de bala e nas folhas secas desgarradas das árvores; ouvir os passarinhos urbanos que se equilibram nos fios de alta tensão, admirar a sabedoria dos fungos que crescem nos troncos das árvores e que trazem a vida de volta; ouvir os arrulhos dos pombos com o respeito que eles merecem e acreditar que é possível flanar com a planta dos pés, mesmo sem ter as asas nos calcanhares de Calvino.

Quando a primavera chegar (porque para mim ela ainda não chegou) vou dedicar um pedaço do tempo aos estudos da tessitura dos vestidos das aranhas, descobrir por que alguns besouros ficam rengos quando pousam ao chão, decifrar os labirintos das formigas que loteiam os jardins e convocar um seminário com os beija-flores para discutir o gosto das rosas, lírios, petúnias, orquídeas e toda gama de jasmins.

Quando a estação das flores apontar (como diria John Fante, a Bandini: Espere, a primavera), vou umedecer minhas raízes na terra para ver florescer aquilo que chamamos de esperança, sobrevivência, resiliência. Esticar o olhar para ver o rio abraçar o mar e enxergar o futuro, esse tempo que não existe, mas, no entanto, é o único que tudo comporta.

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