A política destinada a crianças e adolescentes no Brasil
Natal, RN 25 de abr 2024

A política destinada a crianças e adolescentes no Brasil

19 de outubro de 2022
9min
A política destinada a crianças e adolescentes no Brasil

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Por Eloyze Ponciano

O debate sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil requer uma análise fundamentada na realidade concreta e nas contradições do modo de produção capitalista para que possamos compreender a evolução do atendimento a esse público em diálogo com as mudanças econômicas, sociais e políticas de cada período histórico. Este artigo busca resgatar, de modo breve, a trajetória da política destinada à população infantojuvenil e quais concepções orientavam a sua execução, desde o surgimento das primeiras instituições de atendimento até a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a consolidação da doutrina da Proteção Integral.

A política destinada à infância, no Brasil, tem sua origem fortemente ligada à perspectiva de assistencialismo, filantropia e caridade da Igreja Católica, sob grande influência dos países europeus. As primeiras iniciativas de atendimento à população infantojuvenil surgiram no século XVIII, por meio das Santas Casas de Misericórdia e da Roda dos Expostos, como respostas à realidade de crianças em situação de abandono/orfandade, além do crescimento do índice de mortalidade desse público.

A Roda dos Expostos era uma instituição advinda de Lisboa (Portugal), que recolhia crianças abandonadas e o seu nome deve-se à maneira com que as crianças eram trazidas para o abrigo - colocadas numa pequena porta giratória pelo lado de fora de modo a não identificar as pessoas que as abandonavam. A administração da Roda dos Expostos era de responsabilidade das Santas Casas de Misericórdia, que pertenciam à Igreja Católica e realizavam atendimento hospitalar a crianças abandonadas ou órfãs de pessoas falecidas na instituição.

A preocupação com o abandono de crianças prevaleceu, mas com o passar dos anos e devido a influência do movimento higienista, passou-se a se difundir a problemática do “menor infrator”, que “perturbava” a ordem social. Os sujeitos denominados dessa maneira correspondiam a adolescentes que não eram acolhidos pelas instituições citadas e se encontravam nas ruas em situação de pobreza e vulnerabilidade social. Por essa razão, nesse período, houve uma atenção maior à infância, na perspectiva de “proteção” das crianças abandonadas, por meio de serviços que proporcionavam o ensino de cuidados básicos como forma de prevenir que elas chegassem à condição de “menores infratores”, buscando a extinção desse público, reforçando a lógica de limpeza social.

Já no início do século XX, a lógica de atendimento se modifica, e o Estado passa a investir nas políticas de atenção à infância, considerando a ideia da criança como “futuro do país”, com a finalidade de moldar esses sujeitos para serem futuras “pessoas de bem”, pois crianças e adolescentes em situação de pobreza eram vistas como um perigo para a sociedade. Nesse sentido, as políticas destinadas à infância possuíam um intenso caráter de vigilância.

Diante disso, é importante destacar que nesse período não havia a compreensão de crianças e adolescentes na perspectiva dos direitos e da autonomia. A concepção sobre esse público sequer considerava as fases da infância e adolescência como processos distintos e particulares, do contrário pensavam crianças e adolescentes na condição de pequenos adultos. Reflexo disso é que durante o século XX, a expressão “menor” se propagou entre a sociedade e passou a ser utilizada com maior frequência para se referir ao público infantojuvenil de modo geral.

No ano de 1927 é instituído o Código de Menores, no objetivo de atender crianças e adolescentes em condição de abandono e prática de atos infracionais, na perspectiva desses sujeitos como “delinquentes”, responsabilizando a família pela condição de pobreza em que se encontravam. O respectivo código era orientado pela doutrina da Situação Irregular, que enxergava crianças e adolescentes como um problema que deveria ser “readequado” às normas e ao convívio em sociedade, propondo a internação como medida mais eficaz, submetendo essa população à tutela do Estado. No ano de 1979, foi instituído um novo Código de Menores durante a ditadura, introduzindo a doutrina da segurança nacional, em que a problemática das crianças e adolescentes eram de responsabilidade do governo e das forças militares. Contudo, essa iniciativa serviu apenas para a reatualização da conduta repressiva e punitiva já praticada anteriormente, adaptando à conjuntura ditatorial vigente no país.

Nesse sentido, havia uma reação popular aos métodos fortemente repressivos que conduziam a política de atendimento a crianças e adolescentes no país. Diante do período de abertura política do Brasil, os movimentos sociais passaram a ocupar as ruas e reivindicar os direitos sociais e o debate acerca da infância e juventude ganhou um caráter mais integral. Assim, o Código de Menores não atendia mais às necessidades da população e era preciso pensar novas formas de condução da política destinada a crianças e adolescentes.

No processo de redemocratização brasileira, alguns movimentos tiveram um papel importante na pauta dos direitos de crianças e adolescentes, destacamos o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que contribuiu veemente para a consolidação de uma nova legislação à população infantojuvenil. Nesse contexto, com a promulgação da Constituição de 1988, a perspectiva da universalidade de direitos e da cidadania abriu caminhos para pensar uma nova concepção de infância. Ademais, o cenário internacional também contribuiu para a mudança desse paradigma, por meio da Convenção dos Direitos das Crianças, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, que trouxe os princípios da prioridade absoluta e da proteção integral de crianças e adolescentes, assim como o reconhecimento da condição destas enquanto sujeitos de direitos.

Como resultado desse processo, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por meio da Lei n° 8069 de 13 de julho de 1990, regido pela Doutrina da Proteção Integral e demais princípios expressos na convenção da ONU. O ECA é considerado um marco para o avanço nas políticas públicas infantojuvenis, trazendo a co-responsabilidade entre o Estado, a sociedade, a família e a comunidade na efetivação dos direitos das crianças e adolescentes.

Diante da tendência nacional de ampliação das legislações sociais e dos espaços de participação e deliberação, no ano de 1992 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), por meio da Lei 8.242/1991, órgão referência para a execução do controle social da política infantojuvenil no país. No ano de 2006, esse mesmo órgão cria o Sistema de Garantia de Direitos, propondo a articulação intersetorial entre as instâncias governamentais e da sociedade civil na garantia dos direitos das crianças e adolescentes , a partir dos eixos de promoção, defesa e controle social.

Apesar desses avanços, é importante analisar o cenário da política destinada a crianças e adolescentes inserido na estrutura contraditória do modo de produção capitalista. Dessa forma, é pertinente a reflexão de que o ECA se consolidou no processo de introdução do modelo econômico neoliberal no Brasil, que deslegitima o papel do Estado na promoção das políticas sociais, transferindo para o mercado essa regulação. Nesse sentido, o campo da proteção social sofreu duros ataques com a redução no orçamento público das políticas, enfraquecendo a sua implementação, acarretando no crescimento da pobreza e das desigualdades.

Esse cenário se evidencia ainda mais atualmente, em razão do aprofundamento do ideário neoliberal e o drástico desmonte das políticas sociais, que se articula ao ataque exacerbado aos Direitos Humanos e pelo crescimento da tendência neoconservadora - representada pela extrema direita - no país. É inegável que esse contexto, afeta ainda mais intensamente a realidade e condição de vida de crianças e adolescentes, o que, por sua vez, pode resultar em um aumento das situações de violência e violação de direitos contra esse público. Esse cenário foi apresentado durante o período mais intenso da pandemia da COVID19, em que crianças e adolescentes precisaram ficar dentro de casa em maior contato com seus agressores. Outro ponto se refere ao número de crianças e adolescentes órfãos dos seus principais cuidadores, necessitando de maior assistência do Estado para reparar as consequências dessas perdas.

Portanto, inúmeros desafios ainda estão postos para garantir a implementação do ECA e é imprescindível pensar estratégias de mudança desse paradigma, sobretudo pelo período eleitoral vivenciado atualmente no país, sendo fundamental o fortalecimento das políticas sociais e a atuação mais vigorosa do Estado. Desse modo, essas estratégias se encontram na destinação orçamentária específica para a execução das políticas sociais, a fim de suprir as demandas dos serviços que compõem a rede de proteção e garantia de direitos e qualificar o seu atendimento às violações contra crianças e adolescentes, assim como no objetivo de melhorar as condições de vida desse público. É indispensável também a rearticulação dos mecanismos de participação e controle social, para garantir o processo democrático de construção das políticas públicas, de acordo com a realidade vivenciada por crianças e adolescentes.

Diante disso, vale salientar que não há como efetivar os direitos sociais de forma plena, sem que ocorra a superação do modo de produção capitalista e sua estrutura e opressão da classe trabalhadora. Todavia, é possível construir alternativas de enfrentamento às expressões da questão social produzidas por esse mesmo sistema. Portanto, é essencial reivindicar o fortalecimento da política de atendimento ao público infantojuvenil e a sua implementação, para que possamos avançar na garantia da proteção integral prevista no ECA.

Eloyze Ponciano é estagiária de Serviço Social

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Referências 

BRASIL. Lei n° 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990.

CAVALCANTE, C. P. S. (2014). Fundamentos dos cuidados com crianças e adolescentes: um olhar sobre o Rio Grande do Norte entre 1964 e 1988. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

CABRAL, Luana. A proteção integral de crianças e adolescentes em meio a tragédia da COVID19. Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens. Empório do Direito, 2021. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-protecao-integral-de-criancas-e-adolescentes-em-meio-a-tragedia-da-covid19. Acesso em: 14 de outubro de 2022.

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