Ilhados em nós mesmos
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Ilhados em nós mesmos

20 de outubro de 2022
5min
Ilhados em nós mesmos

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Tensão, ansiedade, desespero. São alguns dos sentimentos que assolam parte dos brasileiros no momento. Do lado esquerdo do peito dessa gente angustiada, bate um coração inconformado e em estupefação diante dos riscos que corremos, do ponto de vista da democracia, dos monstros que autorizam a violência, as não-verdades em holofotes e, sobretudo, o crescimento da fome e da miséria em suas várias faces, seja material, moral, ética. Os retrocessos instaurados, o crescimento raivoso da extrema direita e os desacreditados, que se abstém de lutar, engrossam o caldo desse desespero nosso de cada dia.

Em Mal-Estar na Civilização (1930), Freud fala dos três pilares que levam os sujeitos modernos a não alcançarem a tão sonhada felicidade. Seriam: a compreensão do poder supremo da natureza sobre nós e suas ameaças constantes (olha o aquecimento global aí gente!); a noção de decrepitude que corrompe nossos corpos e mentes tempo afora (velhice, doenças, fragilidade do corpo) e, o principal deles, os regramentos impostos pela própria sociedade; mal-estar maior, segundo ele, porque tolhe nossos desejos mais profundos (matar, copular como animais, praticar canibalismo). A partir desse texto da psicologia social, assim como Totem e Tabu, Moisés e o Monoteísmo e Psicologia das Massas e Análise do eu, muitos outros teóricos se debruçaram sobre esse tema.

Em Arquivos do Mal-Estar e da Resitência (2006), o psicanalista Joel Birman desvela esse mal-estar nos tempos atuais, digamos, pós-modernos, e nos aponta algumas chaves de compreensão para tudo o que estamos vivendo a partir de noções como falta de perspectiva de futuro, fragilidade nos vínculos sociais e afetivos, hipervalorização do consumo, fragmentação do sujeito e a sensação de que ele – instigado pelo individualismo preponderante do capitalismo – está fadado a gerir a própria vida, sem a ajuda de ninguém. Ou seja, em total desamparo. E quando eu falo em desamparo, imaginemos o temor que um bebê deve viver quando está com fome, sujo, sozinho no berço e ninguém chega para acudi-lo. É desse desespero que eu estou falando e que nos atravessa a vida toda.

Para não experimentarmos esse desamparo, segundo Birman, nos submetemos à dor. Não é que o masoquismo social seja tão somente uma ode ao sofrimento, não é isso! É uma negociação desesperada para não nos sentirmos só e em desamparo. E se essa for a única saída, então que soframos. Quando eu vejo pessoas flertando com a violência e a barbárie, com a compulsão por compras, comida ou drogas, aí se fixam essa negociação com o sofrimento. Por medo da falta e da sensação de desamparo, vale tudo. É possível exemplificar essa fragmentação de nossas verdades subjetivas por meio do aparecimento dos nossos sintomas. Todos nós, em alguma medida, nos repetimos. Nos deparamos com determinadas situações em que pensamos, poxa, isso de novo? Fiz tudo errado de novo? Repeti os mesmos erros? Segundo Lacan, nossos sintomas são como ilhas que nos impedem de seguir o fluxo da vida. A gente vai indo e, de repente, para nessa ilha e não consegue seguir.

Então, como foi que chegamos até aqui? A humanidade sempre foi perversa. Basta folhear alguns livros de história para se chegar a essa conclusão. A humanidade cria suas próprias ilhas, onde simplesmente não conseguimos avançar. Daí, a intersecção entre os sintomas singulares e os sociais. Daí, a volta à barbárie; às guerras, daí a fome; a desigualdade; o individualismo; o consumismo; a concentração de renda, enfim, o trágico do humano, que se repete.

Todo mundo concorda que os seres humanos se diferem das demais espécies pelo pensar, pelo falar e pelo agir. E é, exatamente, nesses movimentos da “evolução” que perdemos nosso lugar natural. Simplesmente, por mais que tentemos nos adequar e ter uma noção de pertencimento à família, a um grupo, um país e por aí vai, nos sentimos sós, em sofrimento, e buscando um “sentido para a vida”.

Quer dizer então que o sofrimento não tem jeito? Estamos fadados a nos lascar? Depende. Quando nos implicamos a criar nossa própria narrativa de sofrimento – independente da nomenclatura médica e psíquica, tal como depressão, ansiedade, e outra infinidade de transtornos mentais classificados e codificados pelo Estado – tomamos as rédeas do nosso caminho. Em conversa entre amigos íntimos, ao tentar nomear meu sofrimento nesses dias avassaladores que antecedem as eleições do segundo turno, compartilhando as angústias com essas pessoas e ouvindo-as, chegamos à conclusão de que são tempos difíceis e que ninguém está bem. Entretanto, uma coisa me chamou a atenção nessas conversas, o quanto precisamos e queremos uns aos outros. A quantidade de “eu te amo” que eu ouvi nesses últimos tempos é a prova disso. É como se essas pessoas me dissessem: olha, não estamos sozinhos. Podemos até estar ilhados, mas o amor que sentimos e nutrimos uns pelos outros pode servir de remo para que sigamos esse percurso. Sigamos, portanto.

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