No caminho do meio, virando à esquerda
Natal, RN 24 de abr 2024

No caminho do meio, virando à esquerda

8 de outubro de 2022
6min
No caminho do meio, virando à esquerda

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Abriu o guarda-roupa e, vendo mais uma vez o velho boné vermelho esquecido no canto, perguntou a si mesmo: seria hoje o dia em que falaria a Lúcia sobre Paulo?

Fechou a porta com um ligeiro mal-estar. Ainda não se sentia capaz de falar sobre o ex-amigocom ninguém, nem com Lúcia, aquela perfeita estranha com quem conversava virtualmente há algumas semanas e com quem se sentia absolutamente confortável e tranquilo.

Lúcia surgiu na sua vida de maneira totalmente aleatória. Ele olhava um site de viagens e casualmente viu uma avaliação dela sobre a antiga Birmânia. Gostou do estilo e do humor expressos em tão poucas palavras. Decidiu comentar sobre o comentário dela e no dia seguinte recebeu uma notificação da resposta, que veio com mais humor ainda e uma carinha feliz.

Não demorou para trocarem contatos e em uma semana fizeram a primeira chamada de vídeo. Assim como gostou de sua verve, gostou de seu semblante, de sua voz, de seus livros na estante atrás. Cada um morava num extremo do país, mas a sintonia foi imediata. Como num acordo cauteloso compactuado tacitamente, evitavam falar de assuntos ligados à situação política do país ou preferências partidárias e ideológicas. A cada chamada, que acontecia regularmente pelo menos uma vez por semana e no mesmo horário tarde da noite, discorriam, quase sempre aos risos, sobre acontecimentos do dia, lembranças da infância, gostos musicais, séries de suspense preferidas, problemas de trabalho e amenidades em geral.

Mas o assunto predileto mesmo deles tinha nome: Índia. Empolgavam-se horas a fio conversando sobre tudo o que remetesse ao tema, do Mahabharata ao Ramayana, do papel dos brâmanes ao ofício dos chandalas, da melhor combinação com frango tikka masala ao melhor recheio para o pastel samosa, das contribuições do Império Tâmi aos detalhes arquitetônicos do templo Karnak, das belezas eróticas do Kama Sutra ao deslumbre do deus Shiva. E concordavam com total unanimidade em um aspecto: o “caminho do meio” proposto pelo Budismo, longe do ódio e da mágoa, era sem dúvida o melhor preceito a se seguir.

Assim, cada vez mais, ele se sentia bem com aquelas conversas e sentia também que havia uma pauta de assunto querendo saltar de sua garganta: Paulo.

Paulo e ele foram amigos por muitos anos, desde o tempo da faculdade. E a cada dia em que teria um encontro online com Lúcia, ao abrir o guarda-roupa e dar de cara com o velho boné vermelho, sentia aumentar a necessidade de falar sobre aquilo.

Os dois começaram juntos na militância, ainda na Universidade. E depois que se formaram,seguiram também juntos nas convenções do partido, nas ações junto às comunidades de base, nas panfletagens e comícios. Nas assembleias, complementavam-se nas suas “falações” e escreviam juntos as notas de repúdio ou de convocatórias gerais.

Como diria a Lúcia por que romperam? Sentia que algo apertava dentro de si ao recordar toda a situação, preferia mil vezes falar sobre os quatrocentos dialetos indianos a ter que reviver a cena de ruptura com o amigo, ao saber que tinha sido rejeitado, preterido pelo nome de Paulo, na escolha para assessor-chefe do candidato local favorito daquelas eleições.

Sentiu-se mais que rejeitado, sentiu-se traído, humilhado e ofendido como nenhum outro personagem de Dostoievski. Mas não ousou tomar nenhuma satisfação. Recebeu calado a notícia do próprio Paulo e calado se afastou, sem questionar a escolha ou cobrar qualquer explicação. É claro que gostaria de saber “por que ele e não eu?”, mas seu orgulho foi maior e simplesmente desapareceu.

Bloqueou contatos, deixou de ir às reuniões, não atendeu mais às chamadas. Somente uma única vez concedeu certa justificativa pelo desaparecimento, sem maiores detalhes, para um colega do partido com quem um dia esbarrou por acaso: estava fazendo um tratamento médico, nada sério, apenas decidiu que nesse ano não iria atuar na campanha eleitoral e gostaria de não ser incomodado quanto à sua liberdade de escolha.

Deu, assim, aquele assunto por encerrado, depositando seu boné vermelho de militante numa prateleira esquecida do guarda-roupa. Mas, mesmo alguns meses passados, sobretudo depois que Lúcia surgira em sua vida, sentia que precisava conversar sobre aquilo.

E à medida que o dia das eleições se aproximava, mais crescia sua vontade de se libertar daquela dor, misto de orgulho ferido com invejinha, tudo acrescido ainda de culpa pela pequenez de tais sentimentos.

Até que assumiu para si: sim, vou falar com ela sobre Paulo, quem sabe até pedir uma opinião sincera e isenta.

Na semana anterior às eleições gerais, não conseguiram se encontrar nas chamadas virtuais. Estava nervoso demais com o cenário todo, o país fervia com aquele pleito e tudo parecia por um triz para os principais candidatos, extremo-opostos na disputa. Somente depois do resultado do primeiro turno, com uma configuração acirradíssima, sentiu acalmar-se um pouco: seu candidato ficara em primeiro lugar, ainda que por uma diferença nem tão grande de votos. Mais animado, decidiu chamar Lúcia, ainda que não fosse um dos dias em que costumavam se falar. Quando ela atendeu à chamada, não reconheceu na tela do computador o rosto que oscilava entre o rancor e a raiva. Ela foi logo disparando:

– Já pensou o que vai acontecer se esse candidato vermelho vencer? Culpa dessa tua região, cheia de gente embrutecida. Ignorantes, bem merecem morrer de fome e de sede com a seca.

Por uns três segundos ele permaneceu calado, sem saber o que dizer. Até que compreendeu que o caminho do meio virava mesmo era à esquerda. O melhor a fazer era simplesmente encerrar a chamada de vídeo sem dizer absolutamente nada. E nunca desejou tanto encontrar Paulo como naquele momento.

Correu para o guarda-roupa, pegou o boné vermelho e ganhou a rua em busca do velho amigo.

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