“Não existe manifestação antidemocrática, é apenas crime cometido em grupo”, explica jurista
Natal, RN 19 de abr 2024

“Não existe manifestação antidemocrática, é apenas crime cometido em grupo”, explica jurista

11 de novembro de 2022
13min
“Não existe manifestação antidemocrática, é apenas crime cometido em grupo”, explica jurista

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São diversos os crimes cometidos por grupos bolsonaristas que se amotinam contra o resultado das urnas. No Rio Grande do Norte, rodovias chegaram a ser fechadas e desde o dia 1º de novembro, um grupo se reveza na frente do 16° Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército, na avenida Hermes da Fonseca, em Natal.

De verde e amarelo, dizendo-se patriotas, pedem intervenção militar para impedir que o presidente eleito democraticamente, Luís Inácio Lula da Silva (PT), tome posse. Derrotado, Jair Bolsonaro (PL) estimulou os atos, condenando apenas os bloqueios de estradas promovidos por seus apoiadores.

O procurador federal e professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Fabiano Mendonça explica que os casos devem ser analisados individualmente, mas cita alguns delitos, cabendo sanções penais, civis e administrativas (a servidores), e acrescenta que as leis que vedam atos antidemocráticos precisam ser executadas com rigor. “Não aplicar a lei que é feita exatamente para estes momentos é negar a própria lei e a própria estrutura que embasa a existência desse sistema”, avalia.

“É preciso não haver algo como anistia pra esse tipo de coisa. São atos graves que não se pode deixar passar a oportunidade de iniciar um processo de desnazificação do país. Não é nenhum xingamento. A ideologia utilizada, os discursos, a estética é nazista. Então isso implica em mudança de estruturas e o país precisa de algo semelhante ao que foi feito em outros, como na África do Sul, nós precisamos de mais do que uma Comissão da Verdade para este caso. Precisamos de comissão de unificação nacional, restauração de laços nacionais”.

Bolosnaristas em frente ao batalhão do exército em Natal. Foto: cedida

Organização criminosa

Não cabe alegar que a ação desses grupos se trate de mera manifestação política e vontade de participar da vida pública, aponta Mendonça, que tem pós-doutorados em Direito, pelas Universidades de Coimbra e Lisboa, e pesquisas em Direito Público.

“A democracia não é um regime de tolerância liberada. A democracia é um regime que seleciona o modo de ser e condena outros. Por exemplo, discursos contra direitos humanos, discursos sobre direito a caráter paramilitar de certos grupos impedem que uma organização seja tida como partido político. Ela passa a ser uma organização criminosa. Porque a democracia é um regime que exclui da possibilidade de sua existência esse tipo de discurso”.

Ele destaca que uma manifestação pode ser até mesmo contra leis, pelo fim de um crime, como é o caso da “Marcha da Maconha”, que pede a descriminalização do uso da planta. Os eventos assim denominados foram liberados pelo Supremo Tribunal Federal, recorrendo à liberdade de expressão e de manifestação.

Entretanto, quando se pede a ruptura da democracia, está se cometendo um crime. “Não existe manifestação antidemocrática. É apenas um crime. Cometido em grupo”, explica. “Pessoas que preparem ou organizem esses atos incidem claramente em crime de organização criminosa [Artigo 288].

Crimes contra o Estado Democrático de Direito

“É como se eu dissesse que alguém para protestar contra a existência do crime de homicídio matasse pessoas em público. Essa pessoa não está fazendo a manifestação, ela está cometendo crime. É a mesma coisa. É completamente inadmissível no sistema o uso de direitos para cometer um crime. Na verdade, deixa de ser um direito nesse momento. Infelizmente você só consegue muitas vezes constatar que é um crime depois que a pessoa fez. É semelhante ao caso do pretenso uso de liberdade de expressão para fazer declarações antissemitas. Isso é um crime contra a comunidade judaica não é o uso de liberdade de expressão, isso não é direito”, detalha o jurista.

A ação dos bolsonaristas poderia ser enquadrada no parágrafo único do delito de "incitação ao crime", do artigo 286 do Código Penal, que pune "quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade". Prevê detenção de três a seis meses, ou multa.

O dispositivo foi incluído no Código Penal quando saiu da Lei da Segurança Nacional, revogada em 2021.

“A lei salvaguardou a alteração do código penal, protegendo quem faz manifestação por direito. Mas não existe o direito a um golpe militar, pelo contrário”.

Crimes contra as instituições democráticas

O professor cita os artigos 359 L e N, do Código Penal.

É crime tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, com pena de reclusão, de quatro a 8 anos, além da pena correspondente à violência.

E pena de três a seis anos mais multa deve ser aplicada a que impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral.

O código também prevê o crime de Golpe de Estado, caracterizado por tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído (Art. 359-M). A pena é de reclusão de quatro a doze anos, além de pena relacionada à violência cometida.

Existe intervenção federal?

É possível ler em faixas desses grupos criminosos pedidos de “intervenção federal”. Mas o professor de Direito explica que o termo “não tem nada a ver” com a intenção propalada, de intervenção militar.

Foto: Miguel Schincariol/AFP

“A intervenção federal é um instrumento pelo qual a União interfere em um estado quando ele pratica um ato inconstitucional ou então quando a carência de atos, como quando o então presidente Michel Temer fez uma intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro [em 2018]”, ensina.

Trata-se de um procedimento previsto na Constituição. Na ocasião mencionada, teve o objetivo de diminuir a criminalidade e a recuperar a segurança pública no estado. Foi invocado o Inciso III do Artigo 34, que permite uma intervenção federal para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública".

“É completamente fora de questão um golpe militar. É vedado esse tipo de coisa por definição da própria estrutura”, completa o especialista.

E o artigo 142 da CF?

"Bolsominions" também insistem em dizer que o artigo 142 da Constituição Federal permite o desejado golpe militar. A “fake” não é nova. Em junho de 2020, a Câmara Federal teve que emitir um parecer esclarecendo se tratar de uma mentira.

Foto: Poder 360

“Não existe país democrático do mundo em que o Direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os Poderes constitucionais ou de dar a última palavra sobre o significado do texto constitucional”, dizia o documento.

O artigo 142 diz: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Segundo o parecer, é "fraude ao texto constitucional" a interpretação de que as Forças Armadas podem se sobrepor a “decisões de representantes eleitos pelo povo ou de quaisquer autoridades constitucionais a pretexto de ‘restaurar a ordem’".

“Isso sequer é cogitável, nem é cogitado em nenhum ambiente com o mínimo de seriedade. As forças armadas são apenas uma repartição do poder público, com sua missão constitucional e que não tem nenhum dever de participar de diálogo entre Executivo, Legislativo e Judiciário”, sintetiza Fabiano Mendonça. “As Forças Armadas não têm qualquer atribuição legal que faça referência a eleições”.

Xenofobia, racismo e terrorismo

Lula recebeu 69,34% dos votos válidos da região Nordeste e após o resultado do primeiro turno, os ataques à região por parte de apoiadores de Bolsonaro se intensificaram. De acordo com a Lei 9459, de 13 de maio de 1997 , devem ser punidos os crimes “resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Lula em Natal com a governadora Fátima Bezerra. Foto: Ricardo Stuckert

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) passou a considerar crime de racismo discriminar brasileiros que vivem no Nordeste, no Recurso Especial 1.569.850: “discriminar brasileiros que vivem no nordeste em razão de sua procedência configura crime de racismo previsto no art. 20 da Lei 7.716/89”.

“Se há prática de xenofobia, como ficou muito explícito contra o Nordeste, por mais que o candidato vencedor tenha recebido sua maior votação no Sudeste, a xenofobia pode caracterizar tanto os próprios crimes de preconceito em razão de origem como levar a outros”, diz o procurador federal consultado.

“Se você tiver um bloqueio de estrada em razão de xenofobia, com o objetivo de impedir que nordestinos entrem em determinado território, isso é ato terrorista, por definição legal. É terrorismo por motivação de discriminação de origem, você fazer um ato que veda um meio de transporte de modo a gerar um comportamento generalizado”.

A prática à qual se refere o professor lembra as operações promovidas pela Polícia rodoviária Federal durante o segundo turno.

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A Polícia Rodoviária Federal foi questionada pela Agência Saiba Mais sobre número e caráter de operações realizadas no Rio Grande do Norte e no Brasil, mas não respondeu.

Bloqueio de rodovia em Parnamirim-RN | Foto: Reprodução de vídeo da Band Natal

Policiais cometem crime de prevaricação por não impedirem tais crimes

O apoio ou a falta de ação de agentes de segurança em todos esses atos criminosos também devem ser investigados, segundo a legislação vigente no Brasil. “Indiscutivelmente, a inação de agentes policiais em impedir, em dissuadir, em remover essas manifestações configura crime de prevaricação”, atesta o professor da UFRN.

O artigo 319 do Código Penal diz que é crime retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. A pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa.

Em São Paulo, a Promotoria de Justiça Militar enviou, no dia 3 de novembro, documento à Corregedoria da Polícia Militar paulista orientando a prisão em flagrante de policiais que descumprissem ordens contra as manifestações antidemocráticas no estado de São Paulo. Naquele momento, a orientação técnica era de desobstrução de rodovias.

Servidores públicos

Outras categorias de servidores públicos, além dos profissionais de Segurança, podem responder a processos administrativos se participarem de crimes contra a democracia. A depender da carreira, cabem também punições específicas. é o exemplo de advogados, que têm a defesa do Estado democrático de Direito como um dever profissional.

“É inadmissível um servidor público atentar contra a existência da própria democracia”, comenta Fabiano Mendonça.

Foto: Anderson Coelho / AFP

O ridículo

O professor chega a dizer que a discussão de cada caso deve avaliar se os crimes foram tentados ou consumados e se houve emprego de violência. “Essas pessoas estão incitando a prática do crime, mas muitas vezes é tão esdrúxulo, ou por ter poucas pessoas, ou por tão caricato, ridículo o pedido, que você diz ‘isso não pode ser crime’”, pondera.

Grupos bolsonaristas protagonizam cenas bizarras em todo o país. A exemplo, o homem que se jogou em cima de um carro para fingir atropelamento, em Parnamirim.

Confira seleção de imagens que viraram memes:

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Ação tardia do MPRN

Após 10 dias da intimação enviada (em 1º de novembro) pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN) emitiu recomendação à Prefeitura de Natal e ao Governo do Estado para que, no prazo de 48 horas, seja assegurada a completa, efetiva e ininterrupta trafegabilidade da avenida Hermes da Fonseca e ruas adjacentes, nas proximidades do 16º Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército.

O anúncio foi feito na quinta-feira (10) e publicado nesta sexta (11), mas com foco no trânsito, ignorando os demais crimes cometidos pela organização bolsonarista.

A recomendação conjunta é assinada pela Procuradoria-Geral de Justiça e pelas 19ª, 28ª e 49ª Promotorias de Justiça de Natal.

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