Spinelli: “pedido de intervenção militar é uma demonstração de servilismo baixo ao poder armado”
Natal, RN 16 de abr 2024

Spinelli: “pedido de intervenção militar é uma demonstração de servilismo baixo ao poder armado”

27 de novembro de 2022
8min
Spinelli: “pedido de intervenção militar é uma demonstração de servilismo baixo ao poder armado”

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Incapacidade de se fazer ouvir fora de sua bolha” é o que demonstra as manifestações e acampamentos de grupos sociais que estão ocorrendo em frente a alguns quartéis desde o encerramento das eleições presidenciais com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o cientista social José Antônio Spinelli, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em entrevista à Agência Saiba Mais, Spinelli disse que são protestos minoritários, que demonstram “servilismo baixo ao poder armado” e “expressa de forma muito clara a celebração da extinta ditadura militar como figuração de uma era de ouro, transformando em virtudes todo o conjunto de violências que o regime militar praticou”.

Ele critica o “silêncio ensurdecedor” das Forças Armadas e avalia que, do ponto de vista institucional, deveria, na verdade, “deixar claro seu repúdio a esse tipo de manifestações e desautorizá-las em alto e bom som”.

Apesar de avaliar que a postura dos militares, de certa forma, joga por terra todas as análises interpretativas sobre possibilidade de golpe no país nos últimos anos, Spinelli afirma que “é preciso sublinhar que as Forças Armadas ainda não assumiram um compromisso firme com a democracia, o que implicaria em sua renúncia aos chamados “ideais do movimento de 1964” e a uma autocrítica em relação às violações aos direitos humanos cometidas o passado recente”.

Entre os desafios do novo governo nesta conjuntura, acrescenta, “a mais urgente diz respeito ao seu relacionamento com um Congresso majoritariamente conservador, fisiológico e comprometido com o governo anterior”.

José Antônio Spinelli é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Graduado em Ciências Sociais pela UFRN, é mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. É autor de, entre outros, Getúlio Vargas e a oligarquia potiguar (Natal: Editora da UFRN, 2010); e Coronéis e oligarquias no Rio Grande do Norte (Primeira República) e outros estudos (Natal: Editora da UFRN, 2010).

Confira a entrevista na íntegra.

Como você vê as manifestações de grupos apoiadores de Bolsonaro desde os resultados das eleições presidenciais, especialmente os slogans que reivindicam “intervenção militar” e “liberdade”?

Em primeiro lugar são manifestações minoritárias, porém estridentes e ridículas, de representantes do chamado “bolsonarismo raiz”, ou seja, daqueles grupos de adeptos do extremismo de direita que o bolsonarismo expressa de forma muito clara: a celebração da extinta ditadura militar como figuração de uma era de ouro, transformando em virtudes todo o conjunto de violências que o regime militar praticou (torturas, assassinatos, censura à liberdade de expressão etc.).

O pedido de intervenção militar é uma demonstração de servilismo baixo ao poder armado e traduz uma concepção de política incompatível com o regime democrático, que é um regime de competição pacífica entre forças que se opõem no interior de uma institucionalidade que respeita os direitos humanos e a liberdade de expressão para grupos que pensam de forma diferente e admitem a oposição e a alternância de poder. Quanto à reivindicação por “liberdade”, trata-se de um estupro da própria noção, porque a liberdade exclui a violência pregada por esses grupos já no pedido de intervenção armada. A “liberdade” deles exclui a liberdade do outro e incorpora a violência simbólica e material, além da mentira massificada nas redes sociais.

O que estas ações indicam?

Indicam uma ameaça ao regime democrático e às liberdades reais que esse regime proporciona. Mas, ao mesmo tempo, demonstram o isolamento desses grupos, sua incapacidade de se fazer ouvir fora de sua “bolha”.

O que significa o silêncio das Forças Armadas, do ponto de vista institucional, diante dos protestos e dos acampamentos em frente aos quartéis?

Trata-se de um “silêncio ensurdecedor”, como diria o grande dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues. As Forças Armadas, como instituições de Estado, deveriam deixar claro seu repúdio a esse tipo de manifestações, deveriam desautorizá-las em alto e bom som. Ao silenciar, se colocam numa situação de ambiguidade. A democracia exige a neutralidade política dessas forças, porque sua intervenção quebraria a isonomia do jogo democrático. Essa neutralidade das forças armadas e policiais, sua submissão ao poder civil, é uma condição essencial para que o regime democrático tenha estabilidade, pontos ressaltados por grandes expoentes da Ciência Política contemporânea, a exemplo do italiano Norberto Bobbio e do estadunidense Robert Dahl.

A postura dos militares joga por terra todas as análises interpretativas sobre possibilidade de golpe no país nos últimos anos?

De certa forma, sim. Porque embora as eleições tenham se mantido desde 1989 em diante, é preciso considerar que, em momentos decisivos, o poder militar interveio, inclusive desde o processo constituinte e antes, quando da transição para o poder civil, com os militares colocando tropas nas ruas, sob o comando do general Newton Cruz, para impedir que o Congresso Nacional aprovasse a Emenda das “Diretas Já” para presidente da República. Assim, fez-se a eleição indireta para presidente e um Congresso viciado por uma legislação eleitoral imposta pela ditadura aprovou uma Constituição que conservou prerrogativas militares oriundas do período autoritário. Houve intervenção militar recente, quando um tuíte do comandante do Exército de então, à moda dos pronunciamentos de caudilhos latino-americanos, praticamente impediu que o atual presidente eleito concorresse em 2018. Sobretudo, é preciso sublinhar que as Forças Armadas ainda não assumiram um compromisso firme com a democracia, o que implicaria em sua renúncia aos chamados “ideais do movimento de 1964” e a uma autocrítica em relação às violações aos direitos humanos cometidas o passado recente.

Na sua avaliação, quais são os desafios do novo governo?

Os desafios do novo governo são múltiplos e se colocam em várias frentes. A mais urgente diz respeito ao seu relacionamento com um Congresso majoritariamente conservador, fisiológico e comprometido com o governo anterior. Não vai ser fácil e será preciso fazer concessões dolorosas para articular uma base minimamente confiável a fim de colocar em prática os compromissos assumidos e aprovados nas urnas pelo eleitorado. O governo deve investir na formação dessa frente ampla no Legislativo, mas ao mesmo tempo ver-se na contingência de em muitos momentos precisar negociar caso a caso. O governo terá que reconstruir instituições de Estado que foram parcialmente destruídas e desvirtuadas pelo governo que ainda está no poder. E vai ter que investir pesadamente na recuperação de políticas públicas que viabilizem o desenvolvimento sustentável e com um mínimo de justiça social. Esse é um ponto sensível na medida em que exige um forte protagonismo estatal na área econômica sob pressão de parcela expressiva do empresariado e da grande imprensa conservadora e neoliberal. Instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e empresas como a Petrobras devem ser reinvestidas de importantes funções públicas para garantir a retomada da industrialização com foco em setores estratégicos e de ponta, o que pressupõe voltar a fazer inversões na área de ciência e tecnologia para tornar viável a soberania nacional, o desenvolvimento sustentável e a justiça social. Sem instituições desse porte e sem empresas públicas de ramos estratégicos da economia, será impossível que o Brasil se afirme como nação independente e autônoma no âmbito mundial. Esses desafios se estendem à frente externa, às nossas relações com outros países e blocos de países, para recuperar o protagonismo do país num contexto delicado, devido à guerra Rússia x OTAN. Multilateralismo deve ser a palavra de ordem nesse terreno com reafirmação do papel da ONU como instância de negociação. É preciso recuperar e aprofundar as políticas de integração latino-americanas e investir num ordenamento dos sistemas de Estados que garante a multipolaridade, a paz, mais uma vez, o desenvolvimento sustentável e a independência nacional. A Frente Ampla deve se fazer também fora do Congresso, para os lados da sociedade civil, como uma condição para retirar o país do mapa da fome, para reorientar a política ambiental, invertendo o processo de destruição da Floresta Amazônica e de outros biomas importantes do nosso território, a exemplo da Mata Atlântica, e do Pantanal, do Semiárido e outros. E será necessário, como o presidente eleito disse, colocar o pobre, o povo trabalhador, no Orçamento, mesmo que isso signifique enfrentar a forte oposição do capital financeiro especulativo e da grande mídia corporativa, que insistem em manter o famigerado teto de gastos, essa herança da era Temer que tem destruído políticas públicas desenvolvimentistas e de combate à pobreza.

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