DEMOCRACIA

“Um colegiado que represente todos os estados é fundamental para reduzir as desigualdades regionais”, defende Rafael Fonteles

Governador eleito do Piauí, Rafael Fonteles (PT)

O Governador eleito do Piauí, Rafael Fonteles (PT) participa nesta quarta-feira (7), em Natal, do seminário promovido pelo Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz) com foco em defender o aumento dos repasses de recursos constitucionais aos Estados. O Governador eleito falou à Agência SAIBA MAIS e deu o tom do debate do evento e aponta que, na prática, o processo de descentralização das políticas públicas no Brasil “só ocorreu nas despesas; as receitas continuaram concentradas na União”.

O governador eleito é economista e é um dos que lideram o movimento juntos aos governadores eleitos e reeleitos nas últimas eleições para a criação de um Forum único de administradores estaduais a exemplo do que ocorreu no Nordeste durante a pandemia. “Um colegiado que represente todos os estados é um passo fundamental para reduzir as desigualdades regionais – afinal de contas, estaremos todos os estados discutindo coletivamente, não cada um por si negociando diretamente com a União ou Congresso, por exemplo”.

Leia a íntegra da entrevista:

O senhor tem sido enfático nos últimos anos quanto a necessidade de uma revisão do pacto federativo no Brasil. Por quê?

A Constituição Federal de 1988, como resposta ao caráter autoritário e centralizador do Regime Militar, desenhou as execuções das políticas públicas baseado na cooperação federativa. Mas o que se viu foram Estados e Municípios experimentarem aumento de suas obrigações com serviços essenciais à população, especialmente nas áreas de saúde, educação e segurança, sem a correspondente alocação de recursos para tal. Um Federalismo só para obrigações, que descuidou do fornecimento de recursos para o que foi delegado. Essa arquitetura de descentralização de serviços, sobretudo no país continental como o Brasil, é importante para dar respostas adequadas às diferenças regionais e garantir expansão dos serviços, o que falta é organizar os haveres para tanto, os recursos.

O processo de descentralização, reitero, só ocorreu nas despesas; as receitas continuaram concentradas na União. O cenário foi agravado durante a década de 1990, quando a União substituiu bons tributos progressivos como o IR sobre lucros e dividendos e JCLP, por tributos regressivos, principalmente com o inchaço da Cofins. Isso prejudicou o conjunto da economia, tributando mais os pobres e menos os ricos. Houve também a troca de tributos partilhados por tributo não partilhados com os demais entes. Além disso, as privatizações dos bancos estaduais e das empresas públicas cerceou a capacidade de os governadores de atuarem politicamente e de coordenarem seus municípios.

A revisão do Pacto Federativo é necessária para promover um equilíbrio entre a União e as unidades federadas, tanto na questão das obrigações constitucionais quanto na distribuição dos recursos tributários, garantindo que os governos estaduais tenham capacidade de atuar em prol de sua população e garantir um desenvolvimento mais harmônico.

Qual é o cenário do federalismo hoje no Brasil?

A situação é de um acentuado desequilíbrio de forças, em termos de poder decisório e de recursos financeiros. O governo central detém mais poder de decidir sobre as pautas mais relevantes para o país e concentra a arrecadação de 2/3 dos tributos, e para si com cerca 55% das receitas disponíveis (após transferências obrigatórias), enquanto os Estados absorvem mais responsabilidades e atribuições, que aumentam dia após dia, ao passo que as receitas sofrem duros ataques. Essa situação agrava as desigualdades regionais e prejudica a população, sobretudo as faixas mais necessitadas e que precisam mais dos serviços do poder público.

Desde o início da Covid-19, as tensões federativas foram evidenciadas. Por um lado, a coordenação dos Estados foi essencial para garantir as medidas de combate à pandemia, tanto nas diretrizes de saúde conduzidas pelo Conass, como pela garantia de recursos com o Auxílio Federativo, processo que tive a honra de coordenar durante a presidência do Comsefaz.

Por outro, não faltaram ataques aos Estados – vivemos uma verdadeira guerra federativa. As aprovações da LC 192 e LC 194 no Congresso Nacional estão entre as maiores ofensas ao Pacto Federativo já ocorridas ao longo da história do Brasil. Sob argumentos ilusórios, essas leis promovem reduções estruturais nos orçamentos dos entes subnacionais e devem gerar um cenário catastrófico se não forem revertidas.

Quem mais perde com a concentração de renda nas mãos da União são os municípios e estados menores e mais pobres, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. De que forma é possível reverter essa lógica a curto e médio prazo?

Exatamente por isso defendemos a revisão do Pacto Federativo e a desconcentração de recursos. Um colegiado que represente todos os estados é um passo fundamental para reduzir as desigualdades regionais – afinal de contas, estaremos todos os estados discutindo coletivamente, não cada um por si negociando diretamente com a União ou Congresso, por exemplo.

Os Municípios também serão beneficiados com uma maior atuação dos governadores. Atualmente os governadores têm espaço reduzido para fazerem políticas e auxiliarem os municípios de seus estados. Com uma maior articulação federativa, os pequenos não ficarão à mercê da negociação direta com a União, e poderão contar com seus governadores no papel de coordenação local para o desenvolvimento econômico e social.

No fundo, o boom de consórcios municipais que vivemos hoje é fruto dessa falta de capacidade política dos governadores de coordenarem os pequenos municípios, que vem desde a década de 1990. Com o esvaziamento dos aparatos econômicos e institucionais para cumprir essa função, os municípios acabaram por se auto-organizar para conseguir fazer compras coletivas, por exemplo, ou negociar com União.

Que proposta o senhor defende para repactuar a federação e tornar mais justa a distribuição de recursos entre estados e municípios?

O professor Fernando Rezende, da FGV, um dos maiores especialistas em federalismo desse país, afirma sempre que “o problema da federação brasileira é o problema dos estados na federação”. Os estados perderam muito espaço na distribuição de receita – se olharmos desde os anos que antecederam o Golpe Militar, os estados perderam cerca de 13% na divisão das receitas disponíveis por ente da federação. O fortalecimento dos estados é peça chave para possibilitar um desenvolvimento harmônico, é o governo local que tem capacidade de entender as especificidades locais e coordenar as políticas de forma mais efetiva.

Como repactuar? Não podemos falar em Pacto Federativo sem falar em Reforma Tributária justa e solidária. Hoje, o Brasil tributa muito quem ganha pouco, e pouco, quase nada, quem ganha muito. A lógica está invertida. Além disso, a União tem competência exclusiva para tributar renda.

A divisão das receitas entre os estados também segue uma lógica disfuncional. O ICMS, principal imposto estadual, além de regressivo (incide sobre o consumo), é tributado na origem e não no destino, fazendo com que a renda fique concentrada nos estados produtores. A mudança para o destino (o tributo fica no local que o consumo é realizado) possibilitará uma divisão mais justa de recursos. Mas esse é só o primeiro passo, é importante garantirmos que os estados caminhem para que todos tenham a mesma receita per capita, uma forma de garantir que todos os brasileiros tenham a mesma oferta de serviços públicos independe do local onde mora. Podemos nos inspirar na federação alemã.

É por isso que repactuação e Reforma Tributária andam juntas – é preciso tributar de forma mais justa e desconcentrar os recursos para que possamos construir uma país desenvolvido e com boa qualidade de vida para todos os cidadãos.

O senhor tem se colocado como uma liderança desse debate entre os governadores do país e tem dito que a força dessa pauta passa também pela institucionalização do Fórum Nacional dos Governadores. Pode explicar melhor?

O Fórum dos Governadores surgiu há 7 anos como uma forma de integrar os governos subnacionais na discussão de temas relevantes para o país, sendo fundamental para a condução da pandemia de Covid-19 e a aprovação do Novo Fundeb, por exemplo. É algo inédito na história da federação brasileira. Atualmente, é colegiado com atuação e articulação política importantes para o encaminhamento de propostas e soluções para os grandes problemas do país. Porém, sem formalização jurídica, tem poder institucional limitado para interferir nas agendas importantes do país. O Brasil, quando comparado com outras federações mundo afora, é uma exceção – não há previsão constitucional para que os entes subnacionais interfiram, de fato, nas arenas decisórias, mesmo quando os projetos afetam diretamente a federação.

A institucionalização do Fórum dos Governadores, da forma como defendemos, dará à entidade legitimidade política para representar os Estados na defesa dos interesses da sociedade. Tive o prazer de vivenciar um processo semelhante com a formalização do Comsefaz (Comitê Nacional dos Secretários de Fazendas dos Estados e do Distrito Federal), comitê que presidi entre 2019 até março deste ano – é inquestionável que esse processo foi essencial para garantir maior espaço dos estados no debate público, defendendo sempre a garantia de recursos para a manutenção dos serviços essenciais.

O senhor está confiante em levar adiante a proposta sobre o federalismo com o próximo Congresso, ainda que tão conservador e fisiológico como o atual?

Estamos convictos de que é preciso ampliar o debate sobre as grandes questões do Brasil, envolvendo todos os atores que atuam direta e indiretamente no processo de reconstrução do país e com as mudanças que precisamos – governo central, governos subnacionais, Legislativo, Judiciário, instituições públicas e privadas e entidades da sociedade civil. Só assim conseguiremos andar com as pautas relevantes para o desenvolvimento do país.

Acredito que será central a discussão da Reforma Tributária, e esta deve andar junto com a repactuação federativa. Mais do que compensações, os estados precisam de um remodelamento de nossas receitas para que possam honrar com as obrigações que a população espera de seus governantes. Precisamos de um sistema tributário mais progressivo e que possibilite uma federação mais justa. Estou esperançoso com os avanços que teremos nos próximos anos, há um ambiente de renovação.

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Jornalista e autor da biografia "O homem da Feiticeira: A história de Carlos Alexandre"