Uma literatura potiguar feminina, indígena, negra e livre
Natal, RN 24 de abr 2024

Uma literatura potiguar feminina, indígena, negra e livre

1 de dezembro de 2022
9min
Uma literatura potiguar feminina, indígena, negra e livre

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Por Andrielle Mendes[1] e Josimey Costa[2]

A alma de uma nação é a conjugação de saberes, valores e crenças produzidos coletivamente. É a potência da imaginação individual no desenho que cada um faz de si mesmo junto com seus iguais, gerando todo um imaginário social. Como a literatura é uma das formas mais poderosas para transmitir, produzir e preservar tudo isso, é bem-vinda a lei Nº 11.231, de 4 de agosto de 2022, que institui a Literatura Potiguar como tema complementar e interdisciplinar no ensino público e particular do Rio Grande do Norte. Mas perguntamos: que obras serão tematizadas? Certamente, as canônicas estarão garantidas nos currículos escolares. E as outras, as não canônicas, que lugar terão nesse cenário?

O cânone é o catálogo geral que define os modelos a seguir. A norma geral, ilustrada, diz que esses modelos são as obras clássicas, definidas e definidoras do que é a alta cultura. E quem define que obras são clássicas e qual cultura é alta? É importante entender que há valores políticos que determinaram a formação do cânone. Esses valores têm relação com as estruturas instituídas e instituições do poder, com a formação e continuidade de castas ou grupos hegemônicos que determinam quem tem direitos e ao que as pessoas têm direito nas sociedades contemporâneas. Isso leva à reflexão sobre a importância de compreender essas sociedades, como se formam, como se erige e se consolida o conhecimento em seu âmbito, quem constitui essas sociedades e esses corpos de conhecimento. Claro está que os jovens são o futuro dessas sociedades. E talvez estejamos perpetuando, entre os nossos estudantes, modelos de pensamento estagnados e valores reprodutores de realidades injustas porque estão apoiados em critérios canônicos de produção literária. Não vai aqui um libelo contra o clássico, mas sua ampliação por meio de um apelo à valorização do anticanônico em seu potencial político libertário.

As produções literárias de uma região caracterizam a cultura de um povo e são fundamentais para a construção de uma autocompreensão de seus sujeitos como pensantes, autodeterminados e valiosos por sua herança simbólica. Isso tudo se relaciona com o conhecimento e os valores de uma cultura mais ampla, universal, mas é a própria existência dessa relação que torna fundamental ter um ponto de partida autóctone. O cânone da literatura potiguar começa a se formar com os movimentos literários na segunda metade do século XIX e já nesse momento tínhamos Fabião das Queimadas, um escravizado como primeiro poeta a se destacar entre nós, ainda no registro oral, cantando seus poemas com uma rabequinha.

Quando avançamos no tempo, fomos perdendo essa abertura criativa e cristalizamos nossa produção dentro de um cânone majoritariamente branco, seja lá o que isso quer dizer no Rio Grande do Norte, mas também masculino, politicamente dominante, financeiramente abastado. Até agora, isso ainda ocorre, embora tenhamos obtido avanços em outros tipos de produção fora desse nicho. Hoje, a literatura potiguar se depara com um desafio enorme, que é também sua perspectiva de futuro: como valorizar efetivamente o que está fora do cânone, ou seja, uma literatura de autoria popular e que está e sempre esteve dentro da cultura, que não é alta nem baixa, mas diversa? Uma literatura negra, indígena, feminina, inclusiva como o cordel, o repente, o rap, o funk, o slam, que pode estar fora dos gêneros literários tradicionais, incorporando grafismos e até ousando ser não impressa?

Valorizar o não canônico passa por questionar o próprio cânone, romper os elitismos e os interditos, esses os mais perniciosos porque implicam em exclusões silenciosas e até em autoexclusões. Exige também financiamento significativo, seja por parte do poder público, seja por parte da iniciativa privada. Publicar para não perecer, esta é a condição de existência de uma produção não canônica. Que lugar terá nas escolas a produção de escritores e escritoras indígenas e negras, que utilizam as mídias (incluindo as sociais: Instagram, Facebook, etc.) para descolonizar as imagens que circulam na nossa esfera pública; para enfrentar visões racistas que insistem em retratar a população indígena e negra como grupos sociais que não têm com o que contribuir? Que lugar terá nas escolas a produção de escritoras racializadas não canônicas, cujos antepassados foram escravizados na época da colonização e que, na condição de escravizados, foram proibidos, por lei, de frequentar a escola pública e universal no Brasil? Nós, negros e indígenas, que pudemos estudar e obter um doutorado, ainda hoje somos minoria em nosso estado.

O fato de vetarem por tanto tempo o acesso da população negra e dos povos indígenas à educação, associado a outras violências, talvez ajude a explicar porque ainda há tão poucos doutores entre nós. E talvez ajude a explicar também porque, quando conseguimos escrever, enfrentamos dificuldades para publicar. Crescemos em um país racista, onde boa parte da história oficial foi escrita por uma elite, que costumava retratar povos indígenas e negros como aqueles que estão ali para servir ou, de outra forma, para nada servem.

Uma pesquisa publicada em 2012 por Regina Dalcastagné, mostrou que sete em cada 10 romances publicados entre 1990 e 2004 foram escritos por homens, brancos, sudestinos, de classe média ou alta, com um olhar majoritariamente racista e sexista. Nas obras analisadas, os personagens negros aparecem quase sempre como marginais e as mulheres, nos papéis ou de dona-de-casa ou de objeto sexual. Quantos de nós aqui tivemos a oportunidade de ler livros escritos por homens e mulheres negras e indígenas na infância? Há barreiras externas e há barreiras internas, que talvez expliquem porque muitas mulheres negras e indígenas escrevem e nem todas publicam. Isso acontece porque nós, mulheres, em especial as mulheres racializadas, aprendemos desde muito cedo que o que temos a dizer é desimportante e, por isso, é melhor que permaneçamos caladas. Muitas de nós, oriundas de povos que perderam suas línguas, ainda temos receio de usar a que nos foi imposta.

Oriundos de povos que foram escravizados durante a colonização, negros e indígenas até hoje ocupam o nível mais baixo da pirâmide social. Para nos manter nesse lugar de subalternidade e exclusão, o poder dominante investe continuamente na produção e reprodução de imagens racistas que servem para aprisionar nossos corpos e controlar a nossa imaginação. Nos livros didáticos, nas novelas, nos romances ainda aparecemos como selvagens, atrasados, marginais, oportunistas, perigosos.

Essas imagens nos fazem, constantemente, duvidar se podemos ocupar espaços de legitimidade social como a literatura. Maria Carolina de Jesus, por exemplo, acreditava que ninguém se interessaria pelos seus escritos. Quando a obra Quarto de Despejo tornou-se um sucesso, começaram a circular boatos de que o livro não havia sido escrito por ela e sim pelo jornalista que organizou sua obra. Já Graça Graúna, escritora do povo Potiguara (e nascida no Rio Grande do Norte), levou quase 10 anos para transformar a sua tese de doutorado em um livro, porque acreditava que sua pesquisa não era relevante, mesmo sendo ela uma referência em literatura e Direitos Humanos na América Latina. Não fosse o racismo, que outra palavra encontraríamos para o fato de existir uma lei tornando obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio? Uma lei que completou 14 anos, sendo que a abolição da escravatura já completou 134.

Publicar tornou-se um pouco mais acessível nos últimos anos. A liberação de recursos via editais culturais nos permitiu conhecer a obra de autoras que escreviam há anos, mas que só muito recentemente começaram a publicar. Pressionadas pela mobilização social, mais editoras passaram a acolher nossas escrevivências e o governo federal passou a melhor distribuir algumas verbas destinadas ao setor cultural. Nós também nos aquilombamos em coletivos e montamos nossas próprias editoras; passamos a acessar leis de incentivo; criamos campanhas de financiamento coletivo para publicar nossos livros; publicamos nas redes sociais. As barreiras externas se tornaram menores, porque nós encontramos outras formas de dizer a nossa palavra.

Porém, se as barreiras externas estão menores, as barreiras internas ainda permanecem, por vezes, insuperáveis. Muitas mulheres ainda escrevem e não publicam, pois foram ensinadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, como disse certa vez a poeta Audre Lorde. Enfrentar o medo e transformar o silêncio em linguagem e ação continua sendo um processo de cura, até porque as feridas abertas durante a escravização ainda não cicatrizaram. Achamos que o nosso silêncio nos protegeria. Mas, como já havia alertado Lorde, o nosso silêncio não vai nos proteger.

Ler as obras de escritoras negras e indígenas é transpor as barreiras simbólicas e materiais que impedem o nosso avanço como sociedade. É também o atual e grande desafio da literatura potiguar. A literatura pode transformar a realidade por meio da recriação artística feita por um autor, uma autora, artistas que estetizam o mundo com suas palavras, que podem manifestar tempos e espaços ocultos pelas sombras. Por isso, é fundamental aceitar e permitir que outras obras literárias reflitam os conteúdos e a linguagem da enorme diversidade de imaginários que compõem nosso mundo.

[1] Andrielle Mendes escreveu durante anos para jornais até criar coragem o suficiente para escrever sua tese de doutorado sobre comunicação indígena e descolonização das imagens. Recentemente tornou-se Doutora em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente atua como palestrante e consultora em relações étnico-raciais e de gênero, com enfoque na escrita como prática de liberdade.

[2] Josimey Costa é jornalista, doutora em Antropologia com pós-doutorado em Comunicação e Cultura. Dirigiu o videodocumentário "Imagem sobre imagem: a Segunda Guerra em Natal" e tem seis livros em co-autoria e cinco livros próprios publicados, sendo um de contos, dois de poemas e dois com os resultados de pesquisas. Tem um conto na coletânea "Todos os sentidos”, que ganhou o prêmio Alejandro Cabassa como melhor livro de contos de 2004 concedido pela União Brasileira de Escritores.

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