Por Ana Cláudia Trigueiro
Gal Costa faleceu poucos dias antes do Encontro Nacional do Mulherio das Letras, que comemorou cinco anos da existência do coletivo. A diva tomou o rumo das estrelas defendendo causas justas até o último instante, por isso, considero que ela é a cara do movimento, idealizado em 2017 pela escritora Maria Valéria Resende. Assim como o Mulherio, a baiana despertou mulheres de todo o Brasil desejosas de uma voz que representasse sua existência diversa e livre:
Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo assim minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada…
Gal era a mulher sagrada para quem Caetano compunha os versos alegóricos sobre os tempos duros que o país vivia. A voz forte e extensa dizia ainda mais do que a mensagem propunha e dizia com a segurança de quem sabia de sua condição de mensageira divina:
Ê!
Dona das divinas tetas
derrama o leite bom na minha cara
e o leite mau na cara dos caretas…
Foi pensando na forma desigual com que escritoras eram tratadas no mercado editorial que Maria Valéria idealizou o Mulherio das Letras. Com a ajuda de outras escritoras criou o grupo no Facebook, que hoje conta com sete mil e quinhentas integrantes e luta para dar visibilidade a mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro.
Segue a movida Madrileña
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi Paus, Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia onipresentemente
Rio e Belíssimo Horizonte
Bahia onipresentemente
Rio e Belíssimo Horizonte…
Desde o início até agora, o coletivo organizou eventos presenciais e remotos, promoveu e apoiou pessoas, grupos, pautas, livros, publicou antologias, organizou rodas de conversa, debates, oficinas e saraus, sempre em uma perspectiva colaborativa e não submetida aos interesses do mercado editorial. Nos eventos, mulheres de diferentes orientações sexuais, etnias, classes e lugares têm seu lugar de fala garantido, o que é revolucionário em relação à visibilidade que a sociedade ainda reserva às escritoras.
Quero que pinte um amor Bethânia
Stevie Wonder andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Quando eu tinha oito anos e passava dias na casa dos meus avós, ouvia a radiola da vizinha, fã de Gal. Na mrada protestante não podia haver televisão ou rádio. Músicas e novelas eram proibidas. Mas a voz gostosa e inconfundível da baiana entrava pela janela, tocando nossa alma muito mais do que as rígidas canções do hinário. Acho que meus avós fingiam não se comover, mas sua vontade era a de balançar os corpos (mesmo que discretamente) como eu fazia, enquanto lavava a louça.
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta
A vida, que é meu bem, meu mal
A diva se foi, mas deixou sua voz, sua potência e sua alegria conosco. O Mulherio cresce, dançando e cantando seus versos, agora, em coro, pois somos tropicalistas desde meninas.
Nunca pensei antes, que ter me tornado escritora tivesse a ver com a intérprete de Vaca Profana, mas, pensando bem, muitas das minhas heroínas tem algo de Gal.
E o que estou fazendo agora se não, me render a ela, como Caetano fez e “inscrever assim minhas palavras, na voz de uma mulher sagrada?”.
Ê! Deusa de assombrosas tetas…