Nós, “autores humanos”
Natal, RN 19 de abr 2024

Nós, “autores humanos”

30 de janeiro de 2023
4min
Nós, “autores humanos”

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Na edição deste domingo (29-01) da Folha de São Paulo, leio a curiosa matéria “Entrevista com o Robô”, em que o escritor Joca Reiners Terron conversa com o ChatGPT, um programa de Inteligência Artificial capaz de produzir textos, lançado em novembro de 2022. Se você, assim como eu, desconhecia essa novidade, pasme também: já há uma lista razoável de títulos literários lançados no mercado, escritos em “coautoria” com o ChatGPT.

Mais curioso ainda é que leio essa matéria justamente no intervalo de outra leitura: o ensaio “O infinito no junco: a invenção dos livros no mundo antigo”, da espanhola Irene Vallejo, com tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht (São Paulo, Editora Intrínseca, 2022). Nesse livro fantástico, a pesquisadora, em meio a ótimas histórias sobre clássicos papiros e pergaminhos, levanta a questão sobre autoria já na Antiguidade. Homero, por exemplo, poderia ser a representação atribuída a um conjunto de vozes herdadas da memória oral; Péricles, também, poderia ser muitas vezes apenas a assinatura dos discursos políticos escritos efetivamente pela esposa Aspásia. Sem falar que, muito antes dos copistas de mosteiros medievais, a Biblioteca de Alexandria já possuíaaqueles profissionais responsáveis não só por garantir a autenticidade de uma obra, como também permitir sua perpetuação através de cópias, bem como de cópias das cópias. De mão em mão, é de se indagar: por trás de um texto, não tem ali um dedo a mais na sua autoria?

A História é repleta de casos que desenrolam essa indagação. Na matéria da Folha, por exemplo, Joca cita o caso de Tolstói, que por não saber datilografar, delegou à esposa Sofia a tarefa de datilografar, revisar e redatilografar os originais. Depois da sétima versão de “Guerra e Paz”, o épico de 3000 páginas, Sofia reclamou a coautoria da obra.

É uma questão que, para mim, não se resolveu ainda plenamente: nem sempre é tão nítida a fronteira entre autores, revisores, orientadores, pareceristas e todos aqueles que, em alguma medida, interferem em um texto até a sua versão final. Os próprios editores de um livro são uma espécie de coenunciadores, com seu aval sobre a seleção ou não de obras a serem publicadas, além de sugestões e palpites do que cortar ou acrescentar no texto de um autor.

E embora nós, que escrevemos, assinamos uma obra e assumimos a condição de autor ou autora, estejamos acostumados com a sutil intervenção do Word (o programa que me diz, por exemplo, como devo grafar a palavra coenunciador), vivemos um momento de descontinuidade histórica, este em que, logo mais, deveremos nos referir a nós mesmos como “autores humanos”.

É isso aí: caso você esteja naquele clássico “bloqueio criativo”, ou simplesmente com preguiça de transferir as anotações iniciais do seu caderninho de notas para a página em branco do computador, em breve poderá fazer uso dessa ferramenta de IA e contar com a ajudinha de uma coautoria artificial.

Não dá para se ter dimensão exata de tudo o que isso poderá acarretar. O conceito de “originalidade”, por exemplo, parecerá ainda mais difuso, como sugere esse trecho da matéria de Joca e do Chat:

Em relação ao conceito de originalidade, é importante reconhecer que as ideias e os pensamentos gerados por uma inteligência artificial sempre serão influenciados pelos dados e algoritmos com os quais ela foi treinada e, portanto, podem não ser “originais” no mesmo sentido que um pensamento gerado pelo homem.

Contudo, é possível que uma inteligência artificial produza novos lampejos ou conexões que podem não ter sido óbvias para um humano e, nesse sentido, é possível considerar as ideias geradas por uma IA como originais dentro do contexto de sua programação e recursos próprios.

Como se conclui na matéria, é cedo para qualquer previsão exata, mas é importante se discutir essa questão para, acima de tudo, reconhecer e proteger as obras e seus criadores. Quem viver, verá. E contará essa história para futuros leitores. Por enquanto, consolo-me com o alento de que a criatividade e a capacidade de contar histórias são demasiadamente humanas e insubstituíveis. Que o digam Sófocles, Safo e tantos outros e outras.

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