Recomposição da Comissão de Anistia retoma trabalho de reparação dos abusos da ditadura
Natal, RN 19 de abr 2024

Recomposição da Comissão de Anistia retoma trabalho de reparação dos abusos da ditadura

22 de janeiro de 2023
1min
Recomposição da Comissão de Anistia retoma trabalho de reparação dos abusos da ditadura

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

13 de abril de 2004. Depois de dois anos de espera, familiares de um potiguar perseguido, preso e torturado pela Ditadura Militar finalmente podiam assistir ao julgamento do requerimento de anistia política. Depois de uma comissão avaliar o processo, em Brasília, o pedido foi deferido. A concessão de condição de anistiado político foi acompanhada de uma reparação financeira em caráter de prestação única. O Estado reconhecia, naquele momento, as violações a direitos humanos que seus agentes haviam praticado durante o regime militar. Todos os conselheiros se levantaram e o advogado Paulo Abrão, à frente da comissão durante os governos Lula e Dilma Rousseff, declarou o pedido de desculpas.

O pedido de perdão do Estado brasileiro às vítimas da ditadura era uma dos atos mais aguardados no julgamento de Anistia Política. Mas o ritual foi suspenso desde o governo de Michel Temer. Além disso, a composição da Comissão de Anistia, que julga desde 2002 analisa pedidos de reparação de perseguidos políticos pelo Estado (entre os anos de 1946 e 1988) foi alterada e algumas decisões de procedência dos pedidos de reparação passaram a ser revistos.

Entre 2019 e 2022, a interferência política foi ainda mais ostensiva, com a nomeação de militares que faziam a defesa do regime militar e da prática de tortura. Sob a gestão de Jair Bolsonaro, a comissão julgou 4.285 pedidos de anistia e indeferiu 4.081 — ou seja, 95%. Entre os negados está o pedido da ex-presidenta Dilma Rousseff, torturada e presa por mais de três anos, na década de 1970. As agressões geraram problemas dentários, e a perseguição resultou em condenação, perda de emprego e afastamento dos estudos na universidade.

Depois de seis anos de desmonte, o governo de Luíz Inácio Lula da Silva aponta para um caminho de reconstrução das políticas de Memória no Brasil. Esta semana, o novo ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, nomeou uma nova Comissão de Anistia do governo federal. A lista inclui ex-perseguidos da ditadura, estudiosos do assunto e volta a ter o objetivo de fazer reparações históricas. Além disso, o novo responsável pela área de Direitos Humanos no Brasil decidiu excluir todos os militares da comissão.

A Agência Saiba Mais conversou com um dos nomeados para a Comissão de Anistia. Mário Miranda de Albuquerque já integrou a comissão entre os anos de 2010 e 2018. Ele é natural de Fortaleza, Ceará. Foi preso político de 1971 a 1979, em Pernambuco e Ceará, libertado com a Anistia Política de 1979. É fundador e presidente da Associação 64/68 Anistia, e presidiu a Comissão Estadual de Anistia Wanda Sidou (Ceará) entre 2006 e 2021.

Confira a entrevista na íntegra.

Saiba Mais: O que representa a nomeação de uma nova comissão de Anistia, com a exclusão dos militares, para a política de Memória, Verdade, Justiça e Reparação no Brasil?

Mário Miranda de Albuquerque: A exclusão de todos os componentes da Comissão de Anistia indicados pelo governo derrotado, entre os quais diversos militares apologistas da ditadura de 64/85 e da tortura, e a nomeação de quatorze novos membros com a particularidade de já terem dela participado no período dos governos petistas, não poderia ser mais claro: aponta para a reconstituição do "fio da história" rompido em parte com a ascensão de Temer ao governo (fim das políticas de memória e das Caravanas da Anistia) e totalmente com a eleição de Bolsonaro em 2018, quando não só o fim dessas políticas foi mantido como outros retrocessos impostos, com destaque para o abandono do projeto do Memorial da Anistia (restando em torno de 10% para sua conclusão) e a exclusão do importantíssimo "pedido de desculpas" por parte do Estado,  no rito das sessões de apreciação de processos, talvez o maior avanço das etapas anteriores da Comissão, pelo elevado significado histórico do gesto ante o DNA autoritário do Estado brasileiro. A história volta a caminhar para frente e as políticas de justiça de transição retoma sua caminhada.

Saiba Mais: O que foram os quatro anos de governo Bolsonaro na luta por esta pauta?

Mário Miranda de Albuquerque: Provavelmente no futuro, os historiadores irão identificar a Comissão de Anistia como a área estatal onde a célebre frase de Bolsonaro "eu vim para destruir" tenha se mostrado mais nefasta, com a negação na aplicação de todos os aspectos da política de justiça de transição, o conjunto de princípios que a ONU estabelece para países lidarem com seu passado de regimes autoritários e ditadura e graves violação dos direitos humanos.  Com muita justeza, movimentos e personalidades com atuação na área dos direitos humanos, afirmam que no governo Bolsonaro a Comissão de Anistia se transformou numa Comissão de Desanistia. Não só o indeferimento virou regra, como se procedeu também a revogação de anistias já concedidas. Uma comissão cujo presidente era um militar admirador de um coronel reconhecido pela justiça brasileira como torturador, Brilhante Ustra, diz tudo. Felizmente a resistência desses movimentos e das instituições republicanas impediram que fosse consumado o maior objetivo: o fim da comissão. Desfigurada, alvo de uma verdadeira política de terra arrasada, ela sobreviveu e renascerá mais viva e forte do que nunca.

Saiba Mais: Essa nova Comissão de Anistia deverá reavaliar ações analisadas pelo órgão na Gestão Bolsonaro?

Mário Miranda de Albuquerque: Teremos que fazê-lo. Certamente vamos checar cada processo apreciado pela Comissão durante esses quatro anos do governo Bolsonaro, e o que estiver em desacordo com as provas dos autos e com a legislação que rege a matéria deverá ser revisado. Por óbvio, o que não tiver contrariado será mantido, pois o simples protocolo do pedido não implica seu deferimento automático. Uma comissão que na apreciação dos processos agiu por princípio por motivações ideológicas e não em observância à lei, como parece ter sido o caso, coloca todos seus atos sob suspeição. Além disso, essa prática gerou uma nova figura jurídica que vamos ter que enfrentar, a da vitimização.

Saiba Mais: Quais são os instrumentos para viabilizar as reparações?

Mário Miranda de Albuquerque: Os instrumentos para viabilizar as reparações são as previstas na lei 10.559/2002, que, em termos resumidos, prevê dois tipos: a de prestação única (PU) e a de prestação mensal permanente e continuada (PMPC). A prestação única é aplicada nos casos em que a pessoa tenha sido comprovadamente alvo de perseguição "exclusivamente por motivo político" no período compreendido pela lei (1946-1988). Para quem tenha sofrido algum tipo de dano diferente da perda de emprego ou impedimento de assumir função via concurso público, aplica - se a PMPC. Em ambas modalidades calcula - se um salário mínimo por cada ano de perseguição, respeitado o limite de R$ 100.000,00 no tocante à PU.

Saiba Mais: Muita gente desconhece o trabalho que a Comissão de Anistia exerce. Fala para gente, o que ele representa para a Democracia brasileira?

Mário Miranda de Albuquerque:  A Comissão Nacional de Anistia tem por objetivo específico reparar os danos causados aos cidadãos e cidadãs brasileiras ou aqui residentes provenientes das graves violações aos direitos humanos perpetrados pelos agentes públicos em nome do Estado no período compreendido entre 1946 e 1988, por motivo "exclusivamente político". Em termos mais amplos, ela representa a sinalização às gerações presentes e futuras de que o Estado não tolerará  tais práticas, em especial a tortura. Nesse sentido, a comissão tem uma função civilizatória e de pacificação da sociedade.

Saiba Mais: Desde a posse do presidente Lula, o movimento “Sem Anistia” tem ganhado força no Brasil. O que o país precisa fazer com as violações do ciclo autoritário que se encerrou na transição para o governo democrático? Na sua opinião, quais são os casos mais evidentes de violação?

Mário Miranda de Albuquerque: O Brasil está em vias de encerrar um longo ciclo histórico de impunidade com as graves violações aos direitos humanos por parte do Estado, seja ele em sua feição autoritária, característica que está no nosso próprio DNA, seja na sua feição de "democracia mitigada". Temos avançado em relação à reparação financeira, mas ainda estamos no marco zero em relação à responsabilização judicial dos agentes públicos responsáveis pelas graves violações dos direitos humanos, sem a qual corremos o risco permanente de sua repetição, como demonstra a história recente do nosso país. Quero crer que no seio da sociedade está amadurecido o fruto da intolerância com essa impunidade e que isso venha ser o próximo passo a ser dado.

As mais quentes do dia

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.