Uma pessoa privada de liberdade, que atualmente cumpre pena na Penitenciária Estadual do Seridó, em Caicó, tirou 920 na nota de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Na preparação, J.E lia autores clássicos como Machado de Assis, Clarice Lispector e Graciliano Ramos, tendo seu comportamento elogiado pelo professor.
Os estudos do aluno fizeram parte do programa Novos Rumos, uma parceria do IFRN – Campus Avançado Zona Leste com o Tribunal de Justiça do Estado (TJRN), que aplicou o projeto Círculos de Leitura. Coordenado pela professora Edneide Bezerra, o projeto foi feito entre 2021 e 2022 contemplando, além de Caicó, Mossoró e Caraúbas. As aulas eram feitas à distância, com encontros presenciais a cada dois meses.
No presídio, J.E tinha aulas de literatura e redação. O docente naquela unidade era Francisco Augusto Cruz.
“Esse preso em especial estuda lá dentro, então tem um bom comportamento, é conhecido por ser muito estudioso. Quando o IF fez o projeto de leitura, ele leu todos os livros, fez todas as atividades, participou de tudo com muita dedicação, porque disse que queria tirar uma nota muito boa no ENEM, e aí deu certo. Conseguiu alcançar 920 que é uma nota significativa para um preso que estuda, mas em condições de dificuldade. Eles vão estudar com fome às vezes, às vezes doentes, não têm assistência médica lá dentro, a sala de aula é precária”, afirma Cruz.
Ainda assim, Francisco diz que pôde constatar o poder transformador da educação por meio de J.E.
“Dentro de um espaço prisional que é um espaço de ressignificação da vida, de construção de novos projetos, a pessoa precisa ter outras referências que não sejam do mundo do crime. Se o preso entra numa prisão para anos só ouvindo planejamento de crime, planejamento de assalto, só vendo tortura, sendo torturado, passando fome, ele vai sair de lá reproduzindo esses anos em que viveu sendo condicionado a isso”, comenta o professor.

“Todo mês a gente escolhia um livro para ler, fazia debates, escrevia redações, fazia seminários, tudo. Se ele passar os anos assim, não tem condição da pessoa sair do jeito que entrou. A gente, por exemplo, trabalhou o livro O Cortiço. E aí eles fizeram uma discussão muito bacana sobre a moradia deles, porque muitos moram em lugares pobres, com moradia precária, lugares parecidos com o cortiço, e eles foram falando dos personagens que pareciam os vizinhos que eles tinham na infância”, relata.
Ainda que tenha tirado esta nota, é difícil que J.E entre numa faculdade. Segundo Francisco Augusto, são poucos os apenados que conseguem autorização para sair e fazer graduação. Mesmo assim, o projeto nasceu da necessidade de retomar a “cultura do investimento em educação” nas celas, diz o professor.
“Um preso que estuda tem 75% de chance de não voltar mais ao crime e não voltar mais à prisão”, aponta.

A partir das aulas, os alunos ganham outra dimensão do saber e da importância do ensino, segundo Cruz.
“Eles começam a ter um pensamento crítico, começam a entender o universo em que eles estavam inseridos, de pobreza, de desigualdade, de ausência do Estado, de educação e por aí vai então. Se o Estado está preocupado com a segurança pública, não pode negligenciar a prisão”, afirma.
Ao fim do projeto Círculos de Leitura, outro grupo foi formado. Chamado de Projeto de Elevação de Escolaridade, ele dá aulas de Literatura, Redação, Matemática e Ciências às pessoas privadas de liberdade.
Redação do ENEM
Em 2022, J.E escreveu sobre os “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. No primeiro dia, onde é aplicada a redação, compareceram cerca de 2,4 milhões de candidatos inscritos. Neste dia, o exame aplicou também provas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias, com questões que abordaram a Amazônia e Estado de Direito.