A era da certeza
Natal, RN 25 de abr 2024

A era da certeza

2 de fevereiro de 2023
5min
A era da certeza

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O título deste artigo refere-se ao livro "A era da incerteza", do economista canadense naturalizado estadunidense John Kenneth Galbraith, publicado nos anos 1970 e que virou uma série televisiva de sucesso coproduzida pela BBC, escrita e apresentada pelo próprio Galbraith. Livro e série tratavam do fato que o começo do século 20 foi um período marcado por grandes convicções, com filósofos confiantes no poder da razão, cientistas, entusiasmados com o progresso tecnológico, capitalistas felizes com as vantagens da expansão indústria e socialistas, pregando ardorosamente a construção do socialismo, mas que, contudo, o pós-guerras e a Guerra Fria dos anos 1960/70 tornou essas convicções menos fortes criando um clima coletivo de incertezas.

Esse livro e essas ideias me vieram à tona porque considero que nestes primeiros vinte anos do século 21, mais especificamente estes últimos anos de governos de extrema-direita nos EUA e Brasil (com Trump e Bolsonaro) e principalmente expansão e alcance da internet e redes sociais, vivemos um período curioso, de muita informação mas pouco discernimento quanto ao que se absorve de informações, o que gera uma "epidemia" de certezas . Percebo que atualmente muita, mas muita gente tem certeza de tudo, digamos, e faz questão de jogar - graças à facilidade do zap e redes sociais - essas certezas em nossa cara diariamente.

Comecemos pelas famigeradas fake news e informações difusas. Estamos tranquilamente no grupo de zap e de repente alguém posta a informação que tal cantor da MPB morreu. Pergunto qual a fonte, já que não li aquilo em nenhum lugar e a pessoa responde: "Me mandaram no zap". Respondo pacientemente que terem enviado pelo zap não é fonte e que uma fonte jornalística seria a divulgação via link de um veículo de comunicação conhecido (quer aprovemos sua linha editorial ou não). A pessoa - e outras do grupo - começam a me ironizar, pois têm certeza​ que o cantor está realmente morto, para elas é algo que não cabe questionamento. À noite o artista publica vídeo vivinho da silva negando o óbito e as pessoas que tinham certeza da morte dele se mantém em silêncio. ​Certamente esperando outras certezas de grupo de zap para disseminar.

​Temos as certezas políticas, essa mais graves porque divulgadas como uma estratégia eleitoral-ideológica. Como quando vou comprar um cachorro quente e o sujeito que o prepara comenta comigo assustado: "Se Lula ganhar vai tomar apartamento de mais de dois quartos para dividir com sem teto". Antes eu devolvia a bola e perguntava: "Você tem certeza disso?". Depois, com a percepção de que, sim, a pessoa tem certeza disso, eu apenas mudo de assunto e, no caso, peço para não colocar milho nem ervilha e mais batata palha.

Mas nem só de jogos políticos e fake news vive essa nova "era da certeza". Fico assustado com a quantidade de certezas absolutas que as pessoas, ainda que queridas e gente fina e bem intencionadas, postam em suas redes sociais. Frases feitas motivacionais na qual elas (as frases mas também as pessoas que as postam) tem a receita exata e infalível para ter uma boa noite de sono, para emagrecer, para ter um dia tranquilo, para respirar melhor, para fazer a digestão, para encontrar um/a parceiro/a. Enfim, com tantas certezas e soluções não entendo elas próprias como não resolveram todos esses aspectos nas próprias vidas. Ironia e maldade light à parte, esse "boom" de certezas que nos empurram em sua origem na moda dos livros de autoajuda dos anos 90 e 2000, que enriqueceram picaretas como Lair Ribeiro, Roberto Shinyashiki e outros. Pessoas que nos brindavam com ideias coletivas sem entender (na verdade ignorando mesmo) que o que funciona para beltrano pode não funcionar para sicrano. Porque um conselho para salvar um casamento funcionaria da mesma forma para um casal de classe média alta no Leblon e para um casal de trabalhadores rurais da Bolívia? Um conselho sobre noites de sono ou de formas de lazer pode ser igual para uma mãe solteira periférica com três filhos e para um jovem que mora sozinho em um bairro boêmio?

Há muitas outras certezas no mundo (e nas redes) atualmente. Chama minha atenção como parte considerável de artistas hoje se volta mais para verdades absolutas do que para questionamentos, que na minha modesta opinião, é justamente uma das funções da arte na poesia, pelo que recebo de gente querida e pelo que leio nas redes sociais os versos vêm sendo produzidos pelos artesãos da palavra para proferir verdades. Dar conselhos. Vaticinar que o certo é isso ou aquilo, seja o que o poeta pensar no momento. Não se trata de saudosismo (que ademais, consumo criticar) mas recordo da poesia de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, Florbela, de dúvidas, dilemas, questionamentos, indecisões. Nada de conselhos para os leitores, e sim análise visceral da alma de cada um na tentativa de se entender e compreender esse mundo alucinado que nos rodeia. "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo" (Fernando Pessoa). "Eu não dei por esta mudança,/tão simples, tão certa, tão fácil:/– Em que espelho ficou perdida/a minha face? (Cecília Meireles). Enfim, nada de dar conselho para leitor nem de ter certezas. Dúvidas sim, e muitas. Como cantava Humberto Gessinger em "Infinita highway": "Eu posso estar completamente enganado/Eu posso estar correndo pro lado errado/Mas a dúvida é o preço da pureza/E é inútil ter certeza"

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