Menina de Fogo
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Menina de Fogo

29 de março de 2023
5min
Menina de Fogo

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Por Ana Cláudia Trigueiro

1982

Aos nove anos, eu fazia a terceira série em uma escola na Vila Matilde. Era calada e nunca sorria, a não ser, na segurança do lar. A escola, longe de casa, me fazia caminhar por ruas movimentadas e barulhentas. O ponche de lã não era suficiente para me agasalhar e as botas gastas já me apertavam os dedos.

Sentia-me inadequada naquele mundo distante e gelado. De asfalto em vez de areia, de faróis, em vez de pessoas, de buzinas em vez de vozes. Não havia coqueiros, nem cuias açucaradas de restos que o rapa coco havia deixado. Não havia pitombas, alfenins, cuscuz ou tapioca, mas, estranhas reuniões em que mamãe fazia propaganda de uma marca chamada Tupperware.

O colégio era grande, os colegas de sala eram como habitantes de um outro planeta, mais desenvolvido e avançado do que eu jamais poderia ser. E a professora Kasuko, tão incomum quanto os personagens dos livros que eu já lera. Sua pele era branca como o arroz, seus cabelos pretos e lisos como as asas de uma iraúna e seus olhos, ainda menores dos que os meus. Mal se podia vê-los.

O garoto mais popular da sala era elétrico, raivoso e fazia dos colegas, alvos do seu estado de humor. Distribuía petelecos como quem dá um bom dia, parecendo ser algo desejável de se fazer. Eu o apelidara secretamente de "menino de fogo", porque havia qualquer coisa nele que parecia consumir quem estivesse à sua volta.

Um dia, a professora Kasuko resolveu me colocar perto do “labareda”, talvez imaginando que ela teria um pouco de sossego, tendo em vista que nada parecia capaz de perturbar meu semblante de esfinge.

Ninguém sabia que eu andava angustiada com todas as mudanças que minha família imigrante vivia. Papai viajava o tempo todo e mamãe trabalhava em uma oficina de costuras, portanto, eu e os três irmãos, passávamos muito tempo sozinhos em casa. São Paulo se agigantava sobre nós, como os moinhos de vento sobre Dom Quixote. Temia que a cidade nos engolisse e que nunca mais pudesse ver meu avô.

Naquela manhã de névoa (São Paulo cobria-se de nevoeiro) sentei-me na carteira que ficava na frente do garoto. Temia que me notasse e fizesse algo desagradável, por isso nem o encarei.

Mal encostei as costas na cadeira e senti um puxão no meu rabo de cavalo. Não um puxãozinho leve, mas um que fez a raiz do cabelo doer no couro cabeludo. O resto da manhã ainda me reservou um beliscão e chutes por baixo da mesa. Tudo suportado estoicamente, porque não sabia o que fazer diante da situação.

Recordo de querer sair correndo da classe para me aquecer nas águas mornas do mar perto da casa de vovó. Mas a Praia do Meio ficara há milhares de quilômetros e talvez, nunca mais voltasse a vê-la.

Lembro de ter chegado em casa sentindo ainda mais frio do que o de costume. De almoçar e fazer meus deveres sem dizer à irmã mais velha o que acontecia. O Gato Félix não foi capaz de me animar naquela tarde. Muito menos os gibis do recruta Zero e do Gasparzinho que meu tio havia comprado.

No dia seguinte, sentei-me normalmente na frente do menino. Estava calma, mas por dentro, meu coração disparava. A professora Kasuko pediu que entregássemos nossos cadernos com a lição de casa. Eram passados de um para o outro por cima das nossas cabeças, chegando depois à mestra que os corrigiria.

A pilha foi aumentando até que chegou em mim de maneira dolorosa: Tum, tum, tum, o “menino de fogo” batia com os cadernos na minha cabeça. Batia forte, como se não quisesse apenas me perturbar, mas me machucar.

Demorei dois segundos para reagir. Segurei os cadernos, impedindo-o de continuar o movimento, levantei-me e joguei todos na cara dele, dando o grito feroz que estava preso na garganta.

Depois sentei-me, debrucei o rosto sobre a carteira e chorei copiosamente. Só alguns minutos depois vi, por entre as lágrimas, os olhinhos arregalados da professora Kasuko.

Lembro de tê-la ouvido fazer uma admoestação muito séria ao garoto, de voltarmos às tarefas e, de que ele me deixou em paz dali por diante.

Naquela mesma manhã, voltei para casa embaixo de uma garoa que não foi capaz de diminuir a menina de fogo em que eu havia me transformado. A partir daquele dia, seria assim.

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