Sobre o medo do comunismo
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Sobre o medo do comunismo

29 de março de 2023
7min
Sobre o medo do comunismo

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Homero Costa – professor titular da UFRN

Uma pesquisa do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) realizada de 2 a 6 de março de 2023 e divulgada no dia 19 de março, na qual foram ouvidas duas mil pessoas de 128 municípios, entre outros dados revelados pela pesquisa é que 44% dos entrevistados consideram que o Brasil corre o risco de virar um país comunista com Lula na presidência. Esse percentual é muito próximo do que foi obtido por Jair Bolsonaro na eleição de outubro de 2022 e muito provavelmente são de seus eleitores.

Ricardo Kotscho no artigo “É inacreditável o nível de ignorância que pesquisa revela sobre os brasileiros” publicado no dia 19 de março de 2023 no site do UOL afirma que “deve ser o mesmo contingente que ainda acredita na terra plana, que a vacina faz o sujeito virar jacaré e que bom mesmo é tomar cloroquina” e esse medo (e a ignorância) é “ainda muito utilizado por militares brasileiros para assustar paisanos e garantir seus privilégios”.E que o resultado da pesquisa expressa os efeitos da lavagem cerebral que o país sofreu nos últimos anos e que ainda se farão sentir por muito tempo.

O que essa pesquisa revela quanto ao medo do comunismo é que o discurso da extrema direita, que usa com eficácia as redes sociais, hoje principal instrumento de divulgação de suas pautas, consegue convencer parcelas significativas do povo brasileiro, fazendo-os acreditarem em mentiras, com argumentos toscos, slogans simplistas e argumentos falaciosos como o de que o comunismo vai destruir a família etc. (se fosse perguntado o que essas pessoas entendem por comunismo, certamente revelaria a extensão da ignorância).

Mas o que é relevante é a demonstração da importância de se combater as mentiras, notícias falsas, manipulação e desinformação (além do discurso de ódio). O que a pesquisa revela sobre o medo do comunismo é também a má fé, ignorância e a eficácia do discurso do antipetismo habilmente usados pela extrema direita ao convencer um continente expressivo da população a achar, por exemplo, que o comunismo é uma ameaça de fato no país.

E peça-chave nesse processo Jair Bolsonaro que segue a cartilha da extrema direita global, fomentando a desinformação e as mentiras (e não apenas em relação ao comunismo) mas também como demonstrou ao longo do seu mandato em relação à vacina, a ciência etc. Portanto, o espectro da mentira vai muito além de uma suposta ameaça comunista, mas esta certamente contribui não apenas para gerar mais medo, como também mais engajamentos, mantendo seus seguidores desinformados, combatendo ‘fantasmas’ que sequer sabem o que é.

A ‘ameaça comunista’, como se sabe, foi um dos temas explorado na campanha eleitoral de Bolsonaro. Segundo a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em entrevista ao jornal o Globo "A maior parte das pessoas associa o comunismo na América Latina com as situações de Venezuela e Cuba, combinações de um regime autoritário com realidades como fome e desabastecimento. Isso esteve muito presente nas narrativas do Bolsonaro" e destaca que em setembro de 2022, em um comício em Sorocaba (SP), ele disse, entre outras coisas, que Lula queria 'impor' o comunismo no Brasil.

Mas não é algo dessa conjuntura. No Brasil, o anticomunismo antecedeu até mesmo o golpe de 1964, quando foi usado como pretexto. É possível afirmar que no Brasil foi construído a partir da década de 1930, em especial depois da derrota dos insurretos em 1935 (que foi chamada pelos militares e à direita em geral de “Intentona comunista”). Não por acaso o dia 27 de novembro, data da derrota do movimento insurrecional, passou a ser considerado como uma espécie de Dia Nacional do Anticomunismo. A partir de 1935, houve um sistemático anticomunismo nas Forças Armadas, que se aprofundou nos anos posteriores e que em 1937, serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo (10 de novembro), uma suposta ameaça comunista, através da farsa do que foi chamado de Plano Cohen, pretensamente elaborado pela Internacional Comunista, no qual os comunistas brasileiros se organizavam para tomar o poder, incuindo até mesmo a eliminação física de autoridades que tentassem impedir e foi habilmente utilizado por Getulio Vargas para cancelar as eleições presidenciais programadas para 1938 e instaurar uma ditadura que durou até 1945.

E mesmo antes, o nazifascismo também usou o anticomunismo com uma de suas bandeiras nos anos 1920-30, também com eficácia e drásticas consequências.

Nos Estados Unidos o auge desse processo foi na chamada de Guerra Fria cuja expressão maior foi com o período Macartista (referência ao senador republicado Joseph Mc Carthy) entre 1946 e 1956. Nesse período, ativistas, jornalistas, sindicalistas, artistas, cineastas, dramaturgos, intelectuais, professores foram alvos de perseguições, com a formação de comitês de investigação (contra as atividades comunistas) e muitos foram incluídos em "listas negras", presos, banidos e demitidos dos seus empregos, acusados de serem comunistas. Uma das vítimas mais conhecidas foi o ator e diretor Charles Chaplin, nascido em Londres (16 de abril de 1889) que morava nos Estados Unidos na época e que por seu posicionamento político, foi incluído, como muitos artistas e cineastas, na lista negra de Hollywood.

Diversos filmes como Boa Noite, Boa sorte, As bruxas de Salém, por exemplo, tratam do tema, como muitos artigos, ensaios, teses e livros, alguns publicados no Brasil como “Caça as bruxas: Macartismo, a tragédia americana” de Argemiro Ferreira (Porto Alegre, editora LP&M, 1989) para quem a onda de obscurantismo que ficou conhecida como "caça as bruxas", e uma suposta "ameaça vermelha", “tornou-se a expressão mágica para fundamentar um estado de quase histeria coletiva, alimentado pelos meios de comunicação e que teve no senador Joseph (Joe) McCarthy, o seu mais notório manipulador”.

E no plano externo, mesmo depois do macartismo os Estados Unidos usaram o anticomunismo em defesa dos interesses de suas classes dominantes como pretexto para apoiar golpes e ditaduras na América Latina, especialmente nos anos 1960-70, como ocorreu no Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile(1973) e Argentina(1976) entre outros países.

No Brasil com o golpe em 1964, o anticomunismo foi ampliado, arrefecendo pós o fim da ditadura, mas retornando com a vitória de extrema direita na eleição presidencial de 2018.

Isso significa afirmar que o medo do comunismo ou o fantasma do comunismo ou mesmo a paranóia anticomunista hoje alimentada especialmente nas redes sociais e sua suposta ameaça, não é novo e tem sido usado como estratégia de dominação. E pior: quem acredita se torna também propagador de mentiras, difusor de ignorância e desinformação.

Enfim, o medo do comunismo expresso nos resultados da pesquisa do IPEC antecede a atual conjuntura, não é específica do Brasil e no caso brasileiro, expressa o êxito de uma estratégia de comunicação da extrema direita. É parte de (mais uma) teoria da conspiração elaborada e difundida por ela e que tem as redes sociais como instrumento de divulgação de mentiras e manipulações.

Nesse sentido se nada foi feito ou o que for feito não surtir efeito, esse tipo de mensagens e propagandas para reforçar todo tipo de estupidez, como a de que o comunismo é hoje uma ameaça ao Brasil, vai continuar. Quem formula sabe que não é verdade, mas quem recebe não percebe que é vítima de mentiras e manipulações, porque vivem em uma realidade paralela, sem acessar informações que não sejam as fontes de suas respectivas “bolhas” dos grupos das redes sociais que integram e se auto-alimentam de mentiras e delírios, como esse.

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