CLT completa 80 anos desfigurada por reforma trabalhista mas ainda reivindicada: “PJ é retirada de direitos”
Natal, RN 19 de abr 2024

CLT completa 80 anos desfigurada por reforma trabalhista mas ainda reivindicada: “PJ é retirada de direitos”

30 de abril de 2023
10min
CLT completa 80 anos desfigurada por reforma trabalhista mas ainda reivindicada: “PJ é retirada de direitos”

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Miranda Júnior, 23, já trabalhou em uma empresa do ramo de startups em que possuía um contrato de Pessoa Jurídica (PJ), sem as regulamentações presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mesmo sem ter as obrigações de seguir horários específicos da jornada de trabalho, na prática a situação era outra:

“Apesar do contrato PJ não necessariamente te obrigar a cumprir uma rotina de trabalho, tipo de tal hora a tal hora, eu cumpria, mesmo com a minha empresa dizendo: ‘ah, se você quiser pagar mais cedo, sair mais tarde, pagar essas horas depois, fazer um banco de horas’. Porque em tese eles não podem dizer que você tem que trabalhar de tal hora até tal hora, mas era isso que acontecia e a gente só fazia. Eu trabalhava seis horas pra essa empresa de segunda a sexta”, explica.

Hoje em outra área, possui CLT e vê o novo contrato como uma vantagem:

“Pra mim é bem melhor porque eu sei que além de estar contribuindo para a Previdência, eu tenho direito a 13º, a férias, que são coisas que de fato contam muito pro financeiro. A teoria do PJ é que seria algo mais facilitado, mas não é. Na prática você só perde direitos”, comenta.

Neste ano, a Consolidação das Leis do Trabalho alcança uma marca histórica: são 80 anos de existência desde que foi criada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e sancionada pelo presidente Getúlio Vargas, durante o período do Estado Novo.

Em oito décadas, a CLT experimentou avanços e retrocessos. O mais significativo foi com a Reforma Trabalhista de 2017, feita durante o governo Temer e que teve como um dos “cabeças” o hoje senador potiguar Rogério Marinho (PL), que à época foi o relator da proposta. 

Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN e especialista em Economia do Trabalho, Cesar Sanson, as leis marcaram efetivamente a entrada do Brasil na sociedade industrial.

“É o reconhecimento na década de 1940 de que o país estava se transformando em uma sociedade operária e urbana. É resultante de três movimentos: a transição da sociedade agrária para a industrial; a crescente organização do movimento operário na luta por direitos e os interesses de Vargas na tentativa de cooptação dos trabalhadores”, aponta. 

Assim como na reforma de seis anos atrás, Sanson diz que na década de 1940 também houve movimentação das classes altas:

“Os empresários paulistas à época, já reunidos na FIESP, reagiram fortemente à CLT. A burguesia brasileira nunca aceitou a CLT. É importante registrar que no seu nascedouro a CLT valia apenas para o operariado urbano. Como Vargas era fortemente ligado às oligarquias rurais, o direito à legislação do trabalho e sindicalização não foi estendido aos trabalhadores rurais”, explica.

Para ele, esta lei sempre foi alvo de ataques, mas a forte organização dos trabalhadores em sindicatos até os anos 1990 foram um fator de resistência: 

“Curiosamente a CLT conseguiu sobreviver aos militares. Num regime autoritário, a legislação trabalhista poderia ter sido facilmente desmontada, mas os militares preservaram a CLT e mudaram apenas uma regra substancial, a de que substituiu a estabilidade no emprego pela instituição do FGTS”.

Os ataques agudos, de acordo com o docente, vieram no bojo do governo Fernando Henrique Cardoso e com implementações mais fortes de uma economia política neoliberal, marca da gestão do tucano:

“FHC inicia uma série de reformas, entre elas, a reforma trabalhista que dá início a desregulamentação e flexibilização da legislação do trabalho. As medidas vão no sentido de ampliar o poder do empregador nas condições de contratação, uso (jornada de trabalho) e remuneração do trabalho. O Estado aos poucos vai sendo retirado da arbitragem no conflito entre o trabalho versus capital e a justiça do trabalho e os sindicatos passam a ser fragilizados. Mesmo nos governos petistas, embora com menos intensidade, a flexibilização da CLT teve continuidade. A pá de cal, entretanto, veio como os governos Temer/Bolsonaro que desfiguraram por completo tudo o que se levou décadas para conquistar”, diz o professor.

Recorde de empregados sem carteira 

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua mostrou em fevereiro deste ano que o número de empregados sem carteira assinada no Brasil é o maior de toda a série histórica iniciada em 2012.

Divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os dados revelam que o país possui 13,2 milhões de trabalhadores sem registro em carteira, uma alta de 0,2% em relação ao trimestre anterior. Em relação ao mesmo período de 2021, o aumento foi de 6,4%.

Para o economista e supervisor do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no Rio Grande do Norte, Ediran Teixeira, a flexibilização de Temer impactou diretamente nos números atuais. 

“Quando você retira direitos e flexibiliza as contratações, dá oportunidade para o patrão não assinar mais a carteira, e com isso, com o fim dos direitos individuais da CLT, como contrato temporário, trabalho intermitente, ocorreu que as empresas optaram por contratar pelas contratações mais precarizadas”, diz.

Ediran Teixeira, supervisor do Dieese no RN | Foto: Ascom Searh

“Além do mais, o serviço autônomo passou a ser encarado pela questão do MEI como uma forma de contratação em substituição a carteira assinada. Isso tudo foi flexibilização de direitos que o mercado se aproveitou para piorar os tipos de contratação. Daí você tem um crescimento exorbitante da informalidade, principalmente por conta que o mercado passou a não gerar mais empregos formais, tem a questão dos aplicativos que tomaram muitos empregos formais. As pessoas acham que são empreendedores e na verdade não são. São os trabalhadores mais explorados que se possa existir disfarçados de empreendedores”, define.

Miranda Júnior, que também trabalhou em outra empresa como PJ em que, teoricamente, poderia ter horários flexíveis, disse que os atendimentos nos locais só funcionavam de 8h às 18h. 

“Então se eu quisesse produzir eu tinha que estar logado de seis às oito da noite. E esse ainda era pior porque eu ganhava por demanda, por produção”. 

Sem titubear, ele diz que prefere seu contrato atual, com a CLT. 

“O PJ nada mais é do que uma retirada de direitos e uma mascaração de uma CLT, porque você cumpre a mesma carga horária, é o mesmo esquema até mesmo de responsabilidade de trabalho. A diferença é que você não ganha décimo 13º, não ganha férias, não ganha FGTS, não tem acesso ao seguro desemprego”, elenca.

“Processo civilizatório”

De acordo com Sanson, a instituição da CLT se inscreve no que se pode chamar de “processo civilizatório”, a ideia de que uma sociedade justa e equilibrada se faz no reconhecimento de direitos universais. 

“É o reconhecimento que no conflito desigual entre o capital e o trabalho, o Estado precisa arbitrar na defesa dos mais fracos. A CLT na década de 1940 instituiu uma base mínima de direitos a serem respeitados pelo capital, direitos, diga-se, que nos países europeus já haviam sido reconhecidos há mais de um século e meio”, pontua.

Para ele, as leis sancionadas por Vargas mantêm a importância até hoje.

Sanson é especialista em economia do trabalho | Foto: Matheus Mendes

“A carteira de trabalho com seus direitos foi e de certa forma continua sendo o principal ‘documento’ para milhares de pessoas. Não é apenas um documento de identificação, mas o reconhecimento de direitos que devem ser respeitados”, define.

O filósofo e cientista social lamenta as mudanças ocorridas há seis anos.

“Defender a CLT e a legislação do trabalho é defender uma sociedade inclusiva. Essa ideia de que agora cada um é responsável por si mesmo e de que todos somos empreendedores e não precisamos de proteção social é desastrosa”, adverte.

Mudança nos empregos formais

Já nos dados do 4º trimestre de 2022, o IBGE mostrou que o número de pessoas empregadas aumentou no Rio Grande do Norte puxado pela elevação do trabalho no setor público sem carteira assinada e pela informalidade do trabalhador doméstico. Segundo Teixeira, do Dieese, o novo governo Lula mostra sinais de melhora na economia e um aumento dos empregos formais, mas ele defende que estes empregos formais de hoje não são iguais aos de antigamente. 

Flexibilização leva a aumento da informalidade, defende Teixeira | Foto: Bruna Caetano

“As formalizações são sempre com baixos salários. Vêm ligada a essa questão da precarização do trabalho intermitente, que é considerado emprego formal. Então você tem também uma formalização de trabalho muito ligada a jornada de trabalho altíssima, quando você tem um contrato de trabalho por tempo determinado, ou a jornada de trabalho muito precarizada que ele [empregado] só ganha por aquelas horas que trabalhou. Aí você não tem certeza nunca de que vai ter um salário mensal por mês, você não sabe determinar a sua jornada, não sabe com isso como determinar o valor do seu salário mensal”, acentua.

O economista, assim como os outros entrevistados, vê a CLT como uma conquista histórica dos trabalhadores. 

“Foi tentada ser retirada a muito custo com a reforma, mas com muita resistência os trabalhadores não permitiram ser destruídos todos os direitos e agora é hora da retomada com esse novo governo, para fazer a contrarreforma e devolver os direitos que foram tirados com essa questão do contrato precarizado, contrato intermitente, permitir que as relações formalizadas prevaleçam com as garantias dos direitos que tinha anterior à reforma”, espera. 

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