OPINIÃO

Dostoievski coach e Clarice Lispector autoajuda

Dia desses no Twitter fui surpreendido pela informação (com foto) de que uma livraria de São Paulo ostenta na parede uma frase, digamos, edificante, de Fiódor Dostoiévski. Foi um susto, claro. Quem conhece vida e obra do genial escritor russo nascido em 1821 e falecido em 1881, autor de clássicos como “Crime e castigo” e “Os idiotas”, sabe que seus textos são densos, pesados, “psicológicos”, angustiantes, tudo, menos edificantes. Mas o fato é que o pessoal da livraria conseguiu pinçar do sublime “Os irmãos Karamazov” uma frase, digamos, fofinha (que não vou reproduzir aqui. Fora de contexto, obviamente).

O que leva à reflexão como atualmente tudo tem que ter um lado “coach” ou “motivacional”. Infelizmente, a literatura, ou pelo menos parte da cadeia criativa e consumidora dela, está embarcando nessa política de que livros têm de  ter “uma mensagem”, “um lado positivo”.

Na verdade eu não deveria me surpreender com isso. Há anos que as redes sociais se transformaram em palco de ostentação de frases descontextualizadas. Tudo bem quando de gente que efetivamente as produziu com sentido “motivacional ́ ́, ainda que literário ou musical. Casos de Mário Quintana e Adélia Prado, ou Renato Russo em “Mais uma vez” ou ainda Raul Seixas em “tente outra vez”.

Contudo, viralizou ainda na época do Orkut depois espalhou-se como praga no Facebook, Instagram e grupos de Zap, frases de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina César, do argentino Jorge Luís Borges. Muitas das frases totalmente apócrifas, fakes, ou seja, eles simplesmente jamais as disseram ou escreveram. Outras tantas até da lavra deles, mas iradas de conexo. Explico com um exemplo prático: Clarice no excepcional conto “A imitação da rosa” aborda o tema da loucura crescente e do tédio, a partir do cotidiano sutilmente opressivo da protagonista que espera o marido Armando chegar para um jantar com um amigos. O conto é denso e a loucura da personagem vai sendo tecida pela autora, até que em dado momento tenso no diálogo de duas personagens, Laura diz: “Dar rosas é quase tão bonito como as próprias rosas”.

A partir daí essa frase ganha as redes sociais e serve como texto de abertura de perfis fofinhos, provavelmente com fotos avatar de moças religiosas ou ainda de jovens exibidas de biquíni. Não que nenhuma tenha obrigação de ler Lispector ou saber do contexto de cada frase solta no mundo. Mas por aí também vemos como aos poucos descontextualizamos obras significativas e criamos um mundo paralelo de frases feitas sob medida para agradar, quando na verdade serviram apenas de pilar para textos densos e que querem fazer refletir.

Essa cultura da descontextualização gera outros simplismos. Parte das pessoas simplesmente após não exigir o contexto passa a sequer exigir certeza da autoria. Recordo que uma amiga querida há uns anos postou uma frase até bacana mas com um adendo: “não sei se dessa autora tal, de de qualquer forma achei bonito e resolvi posar”. Em mensagem privada educadamente registrei que ela como professora deveria posar apenas com a certeza da autoria. Levei um esculacho e um sermão de que eu não deveria me preocupar com as postagens dela e tendo se aborrecido, ela se aborreceu e passou uns anos sem falar comigo.

Enfim, não quero ser o chato que polícia as postagens alheias, mas é necessário, como apaixonado pela literatura, registrar que nem Dostoiévski é coach e nem Clarice é autoajuda, como não o são Guimarães Rosa, Cortázar, Garcia Márquez, Machado de Assis, Balzac, Augusto dos Anjos, Jean Genet, Simone de Beauvoir. São escritores e escritoras que se empenharam para através da escrita investigar a alma humana e fazer um mapeamento de suas tensões e crises. Podem e devem ser lidos como tal.

Mas pretendo terminar estas mal traçadas linhas com bom humor. Recordando de texto que escrevi há alguns anos, sobre uma mensagem que recebi num grupo de zap sobre lições de Shakespeare para viver mais e melhor. Entre as “dicas” do genial bardo autor de “Hamlet” e “Rei Lear” estavam: dar mais atenção para os amigos, oferecer flores à pessoa que você ama e olhar mais vezes o sol nascer e se por. Até aí, por mais que eu soubesse que Will jamais escreveu isso, tudo bem. O problema estava na última dica: “Atenda menos o telefone”. Pensei em dizer no grupo que o telefone foi inventado por Graham Bell em 1876 e que Shakespeare morreu em  1616, mas como achei que a dica seria útil para muita gente ali preferi o silêncio.

Segue o jogo.

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