“O sistema tradicional prisional fortalece o criminoso e o torna mais potente”, alerta antropóloga
Natal, RN 19 de abr 2024

“O sistema tradicional prisional fortalece o criminoso e o torna mais potente”, alerta antropóloga

6 de abril de 2023
9min
“O sistema tradicional prisional fortalece o criminoso e o torna mais potente”, alerta antropóloga

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Na entrevista desta quinta (06) do Balbúrdia, a antropóloga e pesquisadora especialista em Segurança Pública, Juliana Melo, falou sobre a chegada das facções criminosas aos presídios do Rio Grande do Norte, a origem dos recentes ataques criminosos em várias cidades do RN durante 10 dias no mês de março e quais alternativas estão sendo tentadas para melhorar o sistema penitenciário não só por aqui, como em todo o Brasil.

Confira os principais trechos:

Um equívoco

O brasileiro tem uma visão equivocada de achar que a prisão é um local distante, que não está próximo dele, que basta colocar os “bandidos” lá, mas não. Tudo que acontece na prisão resvala aqui fora, a prisão é alimentada pelo que acontece aqui fora e quando mais miserável uma prisão em termos de tortura, de falta de dignidade humana, de acesso a alimentação... mais isso fortalece as facções e o crime organizado. A prisão é um retrato caricato, exacerbado, intensificado, da nossa própria sociedade, dos nossos valores, do que a gente imagina como solidariedade, como a gente maneja o sistema de justiça, como a gente pensa a dignidade humana e como a gente trabalha a desigualdade brutal que marca o nosso país

A origem

A partir de 2002, o PCC, que é uma das facções mais poderosas dentro e fora do Brasil. Ele almeja o controle das rotas e comercialização de drogas. O litoral do nordeste e a Amazônia são áreas de interesse por causa das rotas próximas da Europa e África. O PCC é uma facção paulista que em meados da década de 1990 começa um movimento expansionista pelo Brasil, chega no Rio Grande do Norte em torno de 2002, estabelece parcerias com o crime local e passa a mudar a dinâmica dos times de crime que já existiam. Eles passam a ser menos individuais e mais estratégicos, com algumas regras. Por exemplo, fica proibido roubar companheiro de prisão, dentro da favela, não há tolerância com crimes sexuais, enfim, eles chegam aqui por dentro da prisão e tentam estabelecer alianças discretas.

Então, quando a gente fala em transferir um líder de facção para um presídio federal em outro estado, nós também estamos expandimos o crime organizado para todo o país e isso é algo a se pensar.

Mas, quando esse grupo chega em 2002, começam também algumas tensões. Por exemplo, dentro dessa visão coletivista, se eu roubar alguma coisa, parte daquilo que roubo tenho que pagar uma mensalidade porque, teoricamente, um dia serei preso e precisarei de um auxílio na prisão ou pra minha família, que vai passar dificuldade aqui fora e que me sustenta dentro da prisão.

Para o crime local essa mensalidade era muito alta e começaram a vir ordens de São Paulo, como o assassinato de uma pessoa ‘querida’ dentro do sistema, de uma forma covarde. Dentro das normas do estatuto ele estava tentando fugir da prisão. A partir desse assassinato temos uma ruptura e as pessoas que tinham sido ‘batizadas’ como do PCC, elas rasgam a camisa e criam o sindicato do Crime, que vai nascer do PCCC e em rivalidade ao PCC.

Em algumas situações o Sindicato atuaram juntos, como em 2016, para denunciar violações no sistema prisional. Mas, essa rivalidade começa a crescer e vai chegar ao auge no massacre de Alcaçuz. O resultado oficial foram 27 mortos, mas teve um pai que continuou lutando pelo filho e depois acharam os restos carbonizados dele. O Estado reconhece 27 mortos, mas temos uma lista de desaparecidos inconclusos e é muito difícil sabermos”.

Cuidado onde pisa

São muitos os reflexos na cidade, por exemplo, se você está numa favela de maioria PCC, não pode mais entrar em outra cuja maioria seja do Sindicato. Em 2017 e 2018 teve aquele auge de mortes, que culminou em Alcaçuz e sempre o Governo reage da mesma forma, quando teve as rebeliões e o massacre, chamando a Força Nacional, para fazer um controle emergencial da cidade. É emergencial, paliativo, mas não é duradouro e chama também para uma intervenção no sistema prisional”.

Denúncias arquivadas

“Houve uma série de reformas estruturais e arquitetônicas em Alcaçuz. Hoje é muito mais difícil ter uma rebelião, não há mais tomadas nas celas, então, mesmo que um celular, que não entra mais, o que foi outra mudança, conseguir entrar, ele não terá como ser alimentado. Implantou-se um regime disciplinar muito rígido. Mas, as famílias continuam denunciando as mesmas coisas, práticas de tortura com espancamento, sufocamento, choque elétricos, numa cela para seis pessoas há 40, você tem que ficar na mesma cela de uma pessoa com tuberculose numa fase em que a doença está sendo transmitida, a não entrega de bens de higiene.

Tive relatos de pessoas pedindo um copo de água, então é esse sistema que a gente está vendo acontecer desde 2017. Já fiz muitas denúncias, fui ameaçada, acompanhei as famílias, acompanhei as visitas do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura após o massacre, já foram feitas várias denúncias, recentemente estive numa palestra do centro de Referência em Direitos Humanos da UFRN que relatou ter protocolado só no ano passado 253 denúncias de violações como está que estou dizendo, não são novidade, e todas foram arquivadas”.

No que esse animal vai se transformar?

Esse é um tema muito difícil, principalmente, numa sociedade marcada pela injustiça, pela fome. Entendo que as pessoas que ficam revoltadas com a pessoas que roubam. Mas, esse sistema não funciona. Vou dar um exemplo que pode parecer bobo, mas se você pega um filhote de poodle, coloca num canto escuro, bate e grita com ele o tempo todo, não dá água, nem comida. No que esse animal vai se transformar?

Nós estamos fazendo isso com pessoas há seis anos! Eu sei que é injustificável a violência, não estou defendendo nenhuma facção, não estou romantizando porque elas são sim fruto da violência, agem de maneira violenta e são punitivistas. Também não estou dizendo que a pessoa que nasce pobre vai ser criminosa, você tem escolhas, mas alguns caminhos são mais difíceis, precisamos refletir sobre tudo isso. Mas, as pessoas passando por esse tipo de situação, 1º, não vão sair de lá melhores, vão sair com muita raiva e só vai fortalecer o crime organizado. O cachorrinho que citei no exemplo anterior, provavelmente, vai avançar em você.

Outra coisa é que a facção precisa de dinheiro de fora da prisão. Então você tem o tráfico, roubos, sequestros, assaltos a bancos...tudo isso do lado de fora. Parece que a gente não aprendeu nada com Alcaçuz! Inclusive a própria imprensa. O massacre de Alcaçuz foi avisado às famílias, três meses antes essas famílias entregaram ofícios avisando e não se fez nada, foi arquivado. O Estado deixou que aquilo acontecesse. Antes do massacre se dizia que não havia facções no estado e depois do massacre, a gente parou de dizer que existe facção na cidade. Fez seis anos agora do massacre de Alcaçuz e não se falou nada, mas esse caldo está sendo cozido lá dentro”, alerta.

 O caso do RN

Aqui no RN é um caso interessante a ser estudado porque temos uma facção atuante, que rivaliza com uma das maiores facções do país e que aprendeu a usar a linguagem da violência para reivindicar direitos. Esse é um problema comum, estrutural e que não é exclusivo do Rio Grande do Norte.

Se observarmos o Brasil, vamos encontrar em comum muitas estruturas arcaicas que vão passando, mesmo por governos mais ou menos humanistas, com um sistema marcado por torturas, grande número de presos, prisões provisórias, superlotação, baixa qualidade na alimentação, falta de acesso à saúde... isso é nacional. Mas, o Rio Grande do Norte tem características especiais. Temos uma facção que usa essa linguagem violenta e um sistema que não escuta as denúncias e isso é muito sério, porque quando você toca fogo num ônibus, você é ouvido”.

O que queremos enquanto sociedade

“Quando a gente pensa em bandido a gente pensa ‘ah, pro bandido a regra da lei’, e é isso que eles querem. A gente tem que pensar que uma pessoa que tortura, também é uma prática criminosa. Infelizmente, vivemos num país tão violento que a gente naturaliza a tortura, mas isso não é agir dentro da lei. Temos 24 alunos em uma Apac [Associação de Proteção e Assistência aos Condenados], que é uma outra tentativa de gestão prisional. Eles ficam numa casa, recebem comida digna, são chamados pelo nome, não precisam ficar de cabeça baixa, não tem gente armada e o nível de fuga é baixíssimo e os custos são muito menores, porque você trabalha com voluntários e pessoas da família. A Apac trabalha com essa questão mais digna, então ela mata o criminoso e tenta recuperar o ser humano. Já o nosso sistema tradicional é o contrário, ele fortalece e ferve esse criminoso que o torna mais potente. Todas essas são questões do que queremos enquanto sociedade. Há vários perfis de presos, assassinos, serial killer, mas a maioria cometeu crimes de baixo potencial ofensivo e sem arma”.

https://www.youtube.com/watch?v=Akhu4r5wC8s

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