“Nós não estamos prestando contas ao passado. Nós estamos prestando contas ao futuro do país“. A afirmativa do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, expressa o entendimento do Estado brasileiro que, pela primeira vez desde o fim do regime civil-militar, institucionalmente estabeleceu a “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”. Entre os dias 24 de março e 2 de abril, o Poder Executivo relembrou os 59 anos do golpe civil-militar que instalou a última e mais sangrenta ditadura militar no país.
A programação teve início com o lançamento do selo “Nunca Mais” e um ato, em Brasília, na Ponte Honestino Guimarães, que homenageia o líder estudantil desaparecido durante a Ditadura Militar. As atividades tiveram continuidade com um momento de escuta de mais de 150 familiares dos mortos e desaparecidos e uma audiência com anistiados e anistiandos políticos.
O Estado também retomou os trabalhos da Comissão de Anistia. Quatro pedidos de perseguidos políticos foram analisados e deferidos. Foram julgados os requerimentos do jornalista Romario Cezar Schettino, da professora Cláudia Arruda Campos, do líder sindical José Pedro da Silva e do deputado federal Ivan Valente.
Ato em homenagem a Honestino Guimarães
O ato realizado na segunda-feira (27) na Ponte Honestino Guimarães, em Brasília, deu início às ações da “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”.
“Não existe democracia baseada em mentira e houve a destruição do trabalho de reconstrução da história brasileira que vinha sendo feito desde a Constituição de 1988. Este ato é a reconstrução sob os escombros deixados pelo governo anterior. É a celebração da vida, da liberdade e da democracia”, afirmou o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do MDHC, Nilmário Miranda, que está à frente das atividades.
No dia 13 de dezembro de 2022, uma votação na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) derrubou o veto do governador Ibaneis Rocha ao projeto de lei nº 1.697/2021 de autoria do então deputado Leandro Grass (PV), alterando o nome da ponte Costa e Silva – presidente que decretou o AI 5 – para Honestino Guimarães, líder estudantil da Universidade de Brasília, preso em 1973 por agentes do Centro de Informações da Marinha e que desde então permanece desaparecido.
“Quando esta ponte ganha o nome do meu pai, ela ganha tudo que esse nome carrega. O nome dele grita o nome dos companheiros e companheiras que lutaram a mesma luta dele. De todas as pessoas que foram pressas, torturadas e mortas”, declarou Juliana Guimarães, filha de Honestino, sobre o sofrimento das famílias afetadas pela ditadura.
Audiência com os familiares de mortos e desaparecidos políticos
Pela primeira vez em mais de cinco décadas de luta por memória, verdade e justiça, os familiares de mortos e desaparecidos pelo regime militar no Brasil foram recebidos pelo Estado brasileiro para um momento de escuta.

O encontro foi marcado por relatos das experiências dos familiares e vítimas de um regime que por mais de duas décadas sequestrou, prendeu, censurou, torturou, desapareceu e matou, deixando cicatrizes profundas na sociedade.
Conselheira da extinta Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e integrante do grupo Tortura Nunca Mais na Bahia, Diva Santana fez a leitura de uma carta assinada por centenas de familiares de mortos e desparecidos em que apresenta as principais reivindicações do grupo. Ela é irmã de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Reidner Coqueiro, ambos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
Além de pedir que seja reconhecido nulo o ato de extinção da Comissão Espacial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, com a imediata reimplantação, os familiares reivindicam: que sejam revistas e requalificadas as normas e critérios utilizados nas certidões de óbito já emitidas e naquelas que venham a ser emitidas pelo Estado brasileiro , ao reconhecer sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimento de militantes, com a explicitação devida da causa verdadeira do falecimento e do real local de deposição dos corpos; a interpretação das normas relativas à CEMDP observe a evolução da legislação nacional e internacional com a não aplicação de prazos prescricionais ou decadenciais para os pleitos de reconhecimentos e de reparações a familiares de mortos e desaparecidos políticos; sejam cumpridas todas as sentenças já prolatadas e outras que vierem a ser proferidas relativas a violações perpetradas pela ditadura militar; sejam garantidas e planejadas as condições necessárias, financeiras e de pessoal, para que a CEMDP prossiga com as medidas de buscas e identificação de corpos de nossos entes queridos, sem a constrangedora e contraproducente presença de militares nas equipes de busca e sem a participação de agentes da Polícia Federal nos trabalhos de identificação das ossadas; dentro de suas atribuições, solicite audiências e outras medidas que considerar pertinentes para que o Supremo Tribunal Federal (STF) seja instado a reinterpretar a Lei de Anistia que até os dias de hoje garante a impunidade de centenas de torturadores e assassinos.
A comissão foi extinta a 15 dias do fim do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em sessão extraordinária do colegiado convocada pelo advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho, aliado da então ministra Damares Alves e defensor do regime militar. A iniciativa foi baseada na justificativa de que a Comissão teria cumprido seu objetivo determinado por lei. Contudo, após 27 anos de atuação do órgão, poucos corpos foram identificados. No Rio Grande do Norte, três militantes políticos seguem desaparecidos: Hiram de Lima Pereira, Luíz Ignácio Maranhão Filho e Luís Pinheiro.
O ministro Silvio Almeida repudiou o ato ilegal cometido pelo governo anterior e reforçou a importância da CEMDP. “A Comissão de mortos e desaparecidos não é resultado apenas da vontade de um governante, mas sim de uma política de Estado do Brasil amparada pela lei e tratados internacionais”, declarou.
O ministro sinalizou ainda que o MDHC já encaminhou a solicitação de reabertura da Comissão. “Estamos aguardando a decisão do presidente da República para retomar o funcionamento”, disse. A reativação do colegiado se dará por decreto presidencial a ser publicado nos próximos dias.

A necessidade de ampliar a apuração das mortes que não estão contabilizadas pelo Estado brasileiro também foi pautada. A jornalista Jana Sá, filha do potiguar Glênio Sá, ressaltou a necessidade do Estado brasileiro ter “vontade política” para proceder com as investigações. “Meu pai sobreviveu a três prisões políticas, a bárbaras torturas e foi morto em 1990, portanto dez anos depois da Lei de Anistia e pós-período de redemocratização. E não é possível, ministro, que sejam os familiares que tenham que provar ao Estado o que ele sabe que fez mas que atua para negar, ocultar e apagar as provas”.
Glênio Sá, líder comunista, ex-preso político e único norte-rio-grandense a lutar na Guerrilha do Araguaia, morreu em 26 de julho de 1990 num acidente automobilístico ainda não esclarecido. A família nunca aceitou a versão oficial e lançou um documentário com elementos que levantam as dúvidas: “Não foi acidente, mataram meu pai”.
Anistiados e anistiandos
Sem um dispositivo de honra, compuseram a mesa de escuta o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, o assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade, Nilmário Miranda; a presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida; o conselheiro da comissão Marcelo Uchôa; e o representante da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, Lucas Pedretti.

A presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, classificou a agenda como inexplicável. “Não há como descrever esse momento, ver vocês aqui sentados ao lado do ministro é inexplicável. Agora é a hora da escuta e quero agradecer ao ministro Silvio por ter estabelecido como primeira agenda da Comissão de Anistia ouvi-los. Vocês é que vão dizer como a Comissão de Anistia deve trabalhar“, disse Eneá aos representantes de anistiados em defesa da democracia.
Já o conselheiro Marcelo Uchôa, que na Comissão representa os anistiados, chamou atenção para a responsabilidade do colegiado em reparar a memória e evitar atos terroristas como os do dia 8 de janeiro de 2023. “Nossa responsabilidade é a defesa da democracia. A Comissão de Anistia voltou, pois nos últimos anos ela deixou de ter função de Estado e passou a corroborar com a legitimação da ditadura pela gestão anterior, um problema de memória que resultou no que ocorreu no dia 8 de janeiro”, salientou Uchôa.
Fazendo menção ao novo regimento interno da Comissão de Anistia, publicado recentemente, o representante da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, Lucas Pedretti, reforçou a possibilidade de apresentação de requerimentos coletivos. “Essa foi uma inovação do regimento que a gente entende ser muito importante para que possamos ampliar a luta por memória, por verdade e reparação integral”, apontou.
Para além das vítimas de sequestro, prisão, censura, tortura, desaparecimento e morte pelo Estado brasileiro, estão os filhos e netos. Organizados em um coletivo nacional independente, eles apresentaram ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, uma carta em que pautam o retorno e ampliação de políticas de enfretamento aos traumas intergeracional e transgeracional.
A professora Marcia Curi Vaz Galvão, filha de dois militantes políticos – a uruguaia Gladyz Bernudez, conhecida como Rina, e o baiano Araken Vaz Galvão, sargento do Exército que se opôs ao regime militar, participou da guerrilha do Caparaó e acabou se exilando no Uruguai em 1969, fez a leitura dos principais pontos colocados no documento.

Além da garantia do reconhecimento da anistia política ao grupo, foi reivindicada a retomada do trabalho das Clínicas do Testemunho e dos estudos para a ampliação dos projetos de reparação psicológica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema único de Assistência Social (SUAS); orientação institucional de inversão do ônus da prova a favor dos requerentes de anistia política, em virtude da extrema dificuldade de obtenção dessas provas; e revisão dos requerimentos administrativos de anistia negados nos períodos dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Comissão de Anistia
A Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reiniciou, na quinta-feira (30), os trabalhos do colegiado para análise dos processos de requerimento de anistia a perseguidos pelo Estado brasileiro no período da ditadura militar no Brasil (1964 a 1985).
Foram julgados os requerimentos do jornalista Romario Cezar Schettino, da professora Cláudia Arruda Campos, do líder sindical José Pedro da Silva e do deputado federal Ivan Valente, na condição de perseguidos políticos durante a ditadura militar.
A retomada acontece depois de seis anos de desmonte das políticas de Memória e Justiça no Brasil e em meio à nomeação de uma nova Comissão de Anistia do governo federal. A composição inclui ex-perseguidos da ditadura, estudiosos do assunto e volta a ter o objetivo de fazer reparações históricas. Além disso, o novo responsável pela área de Direitos Humanos no Brasil decidiu excluir todos os militares da comissão.
São atribuições da Comissão de Anistia ouvir testemunhas; arbitrar, com base nas provas obtidas, o valor das indenizações; emitir pareceres técnicos com o objetivo de instruir os processos e requerimentos; instituir e manter o memorial de anistia política; e formular e promover ações e projetos sobre reparação e memória.
Documentário
A Semana contou também com o lançamento do Documentário “Nunca Mais”, conteúdo audiovisual que se propõe a manter vivo, na memória da sociedade brasileira, um dos momentos mais sombrios da história nacional.
Ao mesmo tempo em que rememora o passado, o produto aponta para a construção de perspectivas para que, no futuro, ele nunca mais aconteça.
O documentário é narrado a partir do ponto de vista de pessoas perseguidas pela ditadura militar e que sobreviveram ao regime, além de parentes de mortos e desaparecidos. Militantes políticos como o poeta Hamilton Pereira e o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, presos e torturados, contam as experiências vividas.
O vídeo está disponível no site e nas redes sociais @mindireitoshumanos e faz parte da programação da “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”, uma série de eventos que o governo federal, por meio do MDHC, realizará até o dia 02 de abril para divulgar as ações da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade.