Precisamos falar sobre literatura marginal
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Precisamos falar sobre literatura marginal

16 de abril de 2023
6min
Precisamos falar sobre literatura marginal

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Muitos certamente não sabem, mas há um livro novo na praça: “Chama com Dois Olhos Andando” (Editora Casatrês, 2023). Isso, para mim, é motivo de duplo contentamento. Primeiramente, porque se trata de mais uma “cria” do autor Eduardo Ezus, de quem, aliás, já falei antes nesta coluna. Depois, porque esse novo livro se inscreve numa tradição que me atrai particularmente, tradição que reúne nomes diversos que vão de “Cemitério dos Vivos” de Lima Barreto a “Malagueta, Perus e Bacanaço” de João Antônio ou ainda de “Quarto de Despejo” de Carolina de Jesus a “Manual Prático do Ódio” de Ferréz. Tradição essa da qual precisamos sempre falar: a literatura marginal.

Esse “nicho” do campo literário pode englobar diferentes aspectos. O adjetivo marginal pode ser tanto relativo à abordagem de temas ligados à vida de quem está efetivamente “às margens” da sociedade, numa referência a personagens social e economicamente excluídos e marginalizados, à maneira, por exemplo, de “Estação Carandiru” de Dráusio Varela ou “Cidade de Deus” de Paulo Lins. Por outro lado, o caráter marginal pode estar diretamente ligado ao próprio livro e seus processos de produção e circulação. Nesse sentido, há que se considerar que, para além dos “medalhões” das academias e feiras literárias ou das listas de títulos mais vendidos pelas grandes editoras e livrarias, há uma gama enorme de autores e obras que acontecem em esferas menos visíveis, mas que acontecem, enfim, saibamos de sua existência ou não.

A professora e escritora Heloisa Buarque de Hollanda, sumidade no assunto, em ensaio intitulado “Crônica Marginal”, bem assinala: Enquanto fenômeno social, expressão de guetos, escrita do “outro”, denúncia, a literatura marginal é toda aplausos. Mas minha questão agora é outra: estamos diante de um fenômeno novo de cunho realmente literário?

É no rastro dessa indagação que o novo livro de Eduardo Ezus afirma seu valor. Mais do que trazer à luz figuras invisibilizadas pelas sombras da injustiça e da desigualdade, as narrativas de Ezus não só desestabilizam nossas zonas de conforto como sabem muito bem explorar a plasticidade da linguagem com diferentes recursos.

É o caso, dentre outros contos que compõem seu livro, de “Perdendo tempo com essa besteira”, cujo irônico título alude a um instante em que o protagonista, um catador, detém-se na leitura de um livro encontrado no lixo, justamente no dia de seus 50 anos. Esse pequeno instante na vida de João Silva é narrado por meio de metáforas e aliterações que fedem e doem na gente:

O lixo, matéria reciclável, indômita mania de continuar a ser, insumo a partir do consumo, é além do enxofre e do carbono: é nojo, ranço, reprovação, agressão, rebaixamento. Às vezes ele pensa sou lixo que foi usado em outra vida e que esta é a sobra, e enche o carro: de papelão, de garrafa, de alumínio; afoga o pensamento no ímpeto de sobreviver. Ainda novo, era choro e chorume, saliva e suor, enchendo o vão invisível dos porquês: mar negro e mar morto nas alamedas que percorria. O sol secou as lágrimas, os anos ressecaram tudo. Tem amor pelo chorume, pelo líquido grosso que lhe desce o corpo, pela viscosidade nas mãos.

Se a Literatura, mais do que manifestar uma abstrata função poética, pode assumir também a função de ampliar nosso mundo e fazer a gente extrapolar – em conhecimento e em ação – nossas pequenas bolhas de classe média letrada, o livro de Eduardo Ezus cumpre importante papel nesse quesito, lembrando-nos que é preciso, sim, incomodar e fazer perceber que, do outro lado do nosso quintal, nem tudo são flores.

Mas o que me agrada mesmo no novo livro de Eduardo Ezus é o próprio gesto de resistência que sua publicação implica: gosto de pensar no trabalho meticuloso de obscuros autores e editores, desconhecidos que teimam em existir pela palavra escrita e impressa, caso em que se inscreve “Chama com dois olhos andando”. Para além de qualquer fama ou bravata, seu trabalho persiste, na escrita solitária e na artesania caprichada, nas margens em que poucos sabem ver e reconhecer seu grande mérito.

Enfim, que o autor fale por si. Mandei para Eduardo Ezus três perguntinhas básicas e eis o que ele tem a dizer:

Conta como foi o processo da gênese do livro, desde a ideia inicial até a escolha da editora.

A ideia do livro surgiu no final de 2020, ainda no período pandêmico. A princípio, era pra ser uma novela fragmentada... Assim, escrevi os textos do livro entre o final de 2020 e o início de 2022. Após isso, enviei para algumas editoras, dentre elas a Casatrês. Algumas delas se interessaram, mas eu acabei desistindo de publicar. Passaram-se alguns meses, Felipe Moreno, o editor da CasaTrês, entrou em contato e eu revi minha decisão, pois curto bastante o trabalho deles... É uma editora que vi nascer. E aí, durante a metade de 2022 e o início de 2023, fomos alinhando as leituras e revisões até o livro ser publicado, em março de 2023.

Que influências literárias você aponta neste livro?

Minhas leituras favoritas estão entre Raduan Nassar e Graciliano Ramos. Também gosto muito de (João Gilberto) Noll... Alguma influência do Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato... E deve haver outras que não percebo. Fora da literatura em si, digo, do texto escrito etc. tem muita coisa da observação da rua, da vivência em alguns desses ambientes, dessa “imersão”, palavra da moda...

Que recado você daria a potenciais leitores deste livro?

A leitura, assim como a escrita, é uma aventura: é preciso atravessar. Só lendo pra ter a sua crítica pessoal, para além de prêmios e seguidores do Instagram.

É isso aí. Para quem quiser adquirir o livro de Eduardo Ezus, contatos com o autor pelo whatsapp (84)86028344, além dos perfis @osezus e @casatres.editora.

Fica a dica.

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