OPINIÃO

Em defesa da Resolução 487 e pelo avanço da luta antimanicomial

Por Pedro Levi, Luis Lucas, Luana Cabral e Ruan Chacon* 

Em 15 de fevereiro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a resolução nº 487/23 que garante a Política Antimanicomial no Poder Judiciário. A resolução prevê uma série de mudanças nos encaminhamentos e tratamentos de pessoas consideradas inimputáveis, que têm algum transtorno mental e por isso estão desresponsabilizadas judicialmente de suas ações.

Primeiro, é preciso entender o que é de fato essa resolução e para quais mudanças ela aponta, discutindo a política da luta antimanicomial, fundamental para a compreensão do cuidado e do tratamento dessas pessoas por meio da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial); em seguida, tratar dos direitos humanos fundamentais que essa política garante; e, por fim, trazer os benefícios e avanços no tratamento e cuidado dessas pessoas que cometeram atos considerados criminosos e que possuem algum transtorno mental.

O que é a resolução nº487/23, quais suas razões e suas implicações?

A resolução 487/23 do Conselho Nacional de Justiça institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, estabelecendo procedimentos e diretrizes que trabalham pela implementação da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, além de regulamentar e ampliar as garantias previstas na Lei Antimanicomial de 2001 (nº 10.216/2001), tanto no âmbito do processo penal como da execução das medidas de segurança.

É importante pontuar que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão de esfera federal, deixando, portanto, ao encargo dos Tribunais de Justiça de cada estado a responsabilidade pela efetivação e monitoramento das garantias previstas na Resolução.

A Resolução 487/23 foi pensada considerando diversas leis, diplomas e/ou tratados internacionais que estão pulverizados pelo ordenamento jurídico brasileiro e que já abordam, de uma maneira ou outra, algum ponto da temática. Para citar algumas delas:

A Constituição Federal de 1988, que prevê os direitos fundamentais à saúde, ao devido processo legal e à individualização da pena;

A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, de 2006, onde o Estado brasileiro comprometeu-se a promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência;

A Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradante, de 1984, e seu Protocolo Facultativo, de 2002, e o comprometimento do Brasil em combater essas práticas nas instituições de tratamento da saúde mental, públicas ou privadas;

A Lei nº 10.216, de 2001, que trata sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, além de redirecionar o modelo assistencial em saúde mental;

A Resolução nº 8, de 2019, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), destinada à orientação das políticas de saúde mental e uso problemático de álcool e outras drogas em todo o território nacional;

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi instituída por meio da Portaria Interministerial nº 1, de 2014, dos Ministérios da Saúde e da Justiça.

Direitos fundamentais garantidos a partir da resolução

A Resolução elenca vários princípios norteadores, advindos desses institutos jurídicos citados anteriormente, como, por exemplo: o respeito à dignidade humana, a singularidade e autonomia; o respeito pela diversidade e a vedação de todas as formas de discriminação; o interesse exclusivo do tratamento em benefício à saúde; à reabilitação psicossocial por meio da inclusão social; à saúde integral, privilegiando o cuidado em ambiente terapêutico em estabelecimentos de saúde de caráter não asilar, pelos meios menos invasivos possíveis; dentre outros.

Para além disso, a Resolução trata de diversas etapas do processo penal e sobre quais direitos precisam ser garantidos nessas diferentes fases do processo. Ela aborda desde as questões das audiências de custódia, da necessidade de tratamento em saúde mental durante a prisão preventiva (ou outra medida cautelar) e no curso da execução da pena, da medida de segurança e do processo de desinstitucionalização dessas pessoas. Dentre essas garantias, pontuamos duas que são importantíssimas para avançar no debate abolicionista e antimanicomial.

A primeira delas é durante a audiência de custódia, quando há identificação de pessoa com indícios de transtorno mental, deverá haver, pela autoridade judicial, o encaminhamento para atendimento voluntário na Rede de Apoio Psicossocial (Raps). Também será assegurada a essa pessoa a oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia pessoa por ela indicada, que integre sua rede de suporte pessoal ou das redes de serviço público que seja usuária.

Ainda, a autoridade judicial levará em consideração as condições que ampliem a vulnerabilidade social, bem como os aspectos interseccionais, no caso de pessoas em situação de rua, população negra, mulheres, população LGBTQIA+, mães, pais ou cuidadores de crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas convalescentes, migrantes, povos indígenas e outras populações tradicionais.

A segunda garantia elencada trata da etapa de desinstitucionalização dessas pessoas. A previsão trazida é que, no prazo de 6 meses após a entrada em vigor da Resolução, haja uma revisão dos processos para avaliar a possibilidade da extinção da medida em curso, da progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto ou da transferência dessas pessoas para estabelecimento de saúde adequado.

A Resolução também se compromete, no mesmo prazo, da autoridade judicial determinar a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições congêneres de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, com proibição de novas internações em suas dependências e, em até 12 meses, a interdição total e o fechamento dessas instituições.

Avanços e benefícios no tratamento de pessoas com transtorno mental

A Política Antimanicomial no Judiciário, reforça a defesa da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, além de promover avanços significativos na perspectiva do cuidado em liberdade de pessoas com algum transtorno mental.

Ao enxergar essas pessoas pelas suas subjetividades (considerando a complexidade dos casos, demandas e contextos), é possível aprimorar o cuidado, acolhendo com mais sensibilidade, e possibilitando a escuta do sofrimento e das potencialidades. O reconhecimento de que essa pessoa que comete um crime está também em sofrimento psíquico é um dos primeiros avanços no momento de promoção de um cuidado mais humano.

Outro ponto fundamental é a própria socialização do sofrimento, sendo por meio da RAPS (Rede de Apoio Psicossocial) possível o compartilhamento das questões que atravessam essas pessoas (questões sociais, históricas, culturais) a partir de uma troca das suas vivências, gerando assim uma rede de apoio confiável.

Além disso, a transferência do cuidado e tratamento dessas pessoas para uma rede de saúde pública e acessível denota que é possível, a partir de grandes investimentos nessa área, uma melhor forma de enxergar a loucura e combater a psicofobia, retirando estigmas associados às pessoas com transtornos mentais e viabilizando o contato mútuo com a vida em liberdade, com apoio.

Com isso, a retirada dessas pessoas de manicômios judiciários representa não só um desencarceramento para o cuidado em liberdade do próprio indivíduo, como também um grande avanço social pelo direito de estar e ser no mundo sendo compreendido e acolhido no seu sofrimento. E também de nos atentarmos para a produção de adoecimentos que está relacionada à produção e reprodução das relações sociais.

Entender que essa é uma problemática de saúde pública e não de punição/repressão, possibilita a promoção de um acolhimento digno, que é um dos pilares que a resolução do CNJ sustenta. Quebrar a lógica manicomial é abrir portas para uma sociedade livre de violências e violações de direitos humanos.

Necessidade de denúncia e resistência aos retrocessos

Diante dessa resolução, faz-se necessário apontarmos para a calamidade no tratamento atual das pessoas consideradas inimputáveis, mas que estão privadas de liberdade em instituições que reproduzem uma lógica que mistura o manicômio com a penitenciária. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), relatou o estado de abandono e violações de direitos da Unidade Psiquiátrica de Tratamento e Custódia em Natal, RN, denunciando a insalubridade das celas (sem ventilação, celas sujas, pisos quebrados, mau cheiro de acúmulo de lixo, etc); a falta de servidores técnicos próprios (tendo um quadro técnico do Hospital Geral João Machado) e fixos, o que dificulta o vínculo terapêutico – que não existe – com os usuários; a má alimentação (relatos dos usuários apontam comidas mal cozidas e duras, e insuficiência proteica e quantiade insuficiente); desassistência jurídica e de saúde; entre outros.

Tudo isso nos aponta a não garantia de direitos humanos para essas pessoas, que é previsto por lei e que, portanto, não promove nenhum tipo de cuidado efetivo que atenda às necessidades de pessoas com algum transtorno mental.

A nova resolução do CNJ vem para derrubar esse tipo de tratamento, promovendo um cuidado em rede ampla de saúde, como a RAPS, e garantindo a efetividade do tratamento em liberdade que fuja da lógica manicomial, e que garanta assistência básica de saúde, direitos, e de vivência coletiva no acolhimento do sofrimento psíquico o qual passa uma pessoa com transtorno mental.

Reiteramos que investir em tratamentos ineficazes e sem o devido cuidado com essas pessoas é dar condições para que o adoecimento mental se torne ainda mais agravado, comprometendo outras dimensões da vida daqueles/as sujeitos/as, impedindo o desenvolvimento de intervenções que fortaleçam um projeto terapêutico singular eficaz e livre de violências.

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Autores: 

*Pedro Levi é advogado do CRDHMD e pesquisador
*Luis Lucas é estagiário de direito do CRDHMD
*Luana Cabral é psicóloga social do CRDHMD e membra do CEPCT/RN
*Ruan Chacon é estagiário de psicologia do CRDHMD

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