Batata, macaxeira, mandioca, feijão, milho, jerimum, melancia, mamão, tomate, hortaliças: tudo dá. No Rio Grande do Norte, visitantes tiveram a oportunidade de conhecer plantações e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em dois momentos: em 7 de junho, uma excursão visitou o Assentamento Rosário, zona rural de Maxaranguape; no dia 9, um ônibus saiu com cerca de 30 pessoas de Natal para os Acampamentos Irmã Dorothy e Cícero Pedro Nunes, em Ceará-Mirim.
Os encontros, que incluíram almoços feitos pelas comunidades, compõem a programação da Jornada Nacional de Vivências no MST, realizada neste mês, com o objetivo de mostrar ao povo brasileiro como essas pessoas reivindicam o acesso democrático à terra e o dia a dia da agricultura familiar.

“Não somos só barraco”, disse o militante do MST-RN Eriberto Ananias no meio do roçado de uma área emblemática. Com aproximadamente 30 hectares, o Acampamento Irmã Dorothy chega aos 18 anos de luta por reforma agrária. Iniciado com 130 famílias, tem atualmente 34. “Acampamento é um trem; para na estação, descem dois e sobem cinco. Alguns já faleceram, outros se foram e todo mundo que chegar aqui será recebido”, explicou.
A região é chamada de Complexo da Açucareira, onde existiu a Cia. Açucareira, do ex-governador Geraldo Melo, pai de Geraldo Melo Filho, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) durante o governo Bolsonaro.
Com a falência da indústria, a área que se tornou improdutiva até a chegada das ocupações. São várias entre os municípios de Extremoz e Ceará-Mirim. E só no Acampamento Cícero Pedro, foram produzidos seis mil quilos de alimentos em 2022, de acordo com os trabalhadores.

“A terra é boa em todo canto. Ocupamos, resistimos e estamos produzindo. Tem quatro aqui se formando bacharéis em Agroecologia. Eu sou um deles. Nossa intenção é produzir o que comer sem se estragar, produzir livre de veneno. Nada é praga. A natureza criou todo mundo em cadeia alimentar. Na hora que eu mato a cobra o rato aumenta”, contou Eriberto, que estuda na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) em formato híbrido pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), mantido pelo Incra.
Eriberto é coordenador da Brigada Carlos Marighella, responsável pelos acampamentos da região. As brigadas são organizações constituídas para territorialização do movimento.
Resistência e história
Muita coisa já aconteceu no chão visitado. Ameaças de reintegração de posse, venda do terreno, vistorias. Maria Irene, 70 anos, está no Dorothy desde a montagem dos primeiros barracos de lona e reafirma o que foi dito pelo companheiro de movimento social: “A gente planta pra viver tranquilo. Quando tem mais do que a gente consome, a gente doa pra quem precisa. Às vezes, a gente vende só pra conseguir pagar algum trabalhador pra cá.”

Casada, com cinco filhos, mais alguns netos e bisnetos, Irene fazia faxinas antes de aderir ao MST. O marido, Emanoel Leonardo, é aposentado e trabalhou 42 anos na usina que estava ali antes dos acampados.
“Deus não deixou título de terra pra ninguém. O povo que tomou conta. Deus é um pai rico. A terra é pra gente trabalhar. Se a gente não plantar, como vai viver o país? A gente luta uma luta tranquila. Tem sido bom, corrido, muita luta, muita mobilização. A nossa arma é Deus e um facão.”

Quase duas décadas trabalhando no acampamento, dona Maria Irene renova sua fé em Deus, com a capelinha de Santa Luiza contruída com doações, e com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Lula é uma pessoa de Deus e é bom pra nossa luta. A gente tem boas expectativas, que o processo de reforma agrária ande agora com ele e com o rapaz que tá na superintendência do Incra”, disse, referindo-se a Lucenilson Ângelo de Oliveira, assentado do movimento e ex-secretário-adjunto do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar (Sedraf) no Estado.
Maria Irene e outros acampados esperam em breve poder comemorar o direito a terra, apenas uma etapa do que reivindicam. Eles também pedem infraestrutura, saúde, educação, “bem viver”.

Ataques e tentativa de criminalização
A Jornada abrange todas as regiões do país, inserindo a sociedade no debate sobre a reforma agrária, em meio aos ataques sofridos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para tentar criminalizar o MST. A iniciativa desmente as acusações e notícias falsas da extrema direita.
“Essa CPI que tá rolando, a gente sabe que já tem tudo pronto, estão com relatório pronto, só polemizando, mas a gente sabe do resultado final. O agronegócio dizendo que sustenta o Brasil… Não sei quem foi o maluco que disse que o país só come soja e milho transgênico. A agricultura familiar detém 75% do que todo o país come. São as famílias que sustentam e produzem”, argumentou Eriberto.

“Sem-terra é só uma marca feia que botaram em nós. Dizem que a gente nunca produziu, que é invasor.”
A CPI tem como presidente o deputado federal Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS), investigado em inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) por envolvimento com a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro. O relator é o deputado Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro que é alvo de investigação por suspeita de integrar quadrilha de contrabando de madeira da Amazônia.
Dirigente nacional do MST no RN, Erica Rodrigues acredita que as vivências podem contribuir para que mais pessoas apoiem a causa. “O movimento vai sair fortalecido. Nossa intenção é fazer com que a sociedade conheça mais assentamentos e acampamentos, a partir da vivência com as famílias para entender a trajetória de luta e a produção.”, disse.

“Aqui é um lugar de moradia das famílias, que se propõem a viver de uma ova forma, livres do racismo, da LGBTfobia e outras formas de discriminação. É impossível construir uma reforma agrária e a agroecologia em uma sociedade doente”, completou a militante.
Imersão e informação
Nem chuva, sol e lama pelo caminho dispersou ou parou o grupo que caminhou pelos roçados e provou do feijão colhido ali e da galinha criada nos quintais produtivos. A vereadora de Natal Brisa Bracchi (PT) estava entre os visitantes: “Esses últimos tempos foram tão duros que cada vez mais a gente entendeu a necessidade dessa luta. Essa experiência todo mundo deveria ter para comprovar isso.”

A aposentada Conceição Morais, natural de São Paulo e há seis anos vivendo em Natal, sempre foi simpatizante da mobilização, mas nunca tinha se aproximado tanto. “Visitei feira e estou sempre apoiando. Quando vi que ia ter a jornada, achei muito oportuno pelo momento político que estamos vivendo”, comentou, ao se dizer suprpresa pelo tipo de organização.
“Cada um tem seu pedaço de terra. Eles têm muita força de vontade, luta, resistência, de estarem aqui desde o início. Uma das mulheres disse ‘isso aqui faz parte da gente, mesmo que a gente queira sair não consegue’. A gente passa pela estrada, vê, mas não tem noção de como é a organização aqui.”

A ecóloga Jessica Paiva também tinha curiosidade de conhecer melhor os espaços compartilhados pelas comunidades que se formam na luta por terra. “Fiquei super feliz de poder acompanhar de perto e conhecer esses protagonistas, pessoas que estão à frente, lutando há muito tempo”.
Ela também ficou impressionada positivamente pelo número de famílias acampadas na região, além da quantidade e diversidade de alimentos que produzem.

“Foi bem interessante descobrir em que condições eles estavam no direito à terra e entender que acampamento produtivo é diferente de assentamento. Entendi o processo e o que estão pleiteando agora, pra ter o direito à posse.”, enfatizou, lembrando que recebeu explicação: acampamento é o lugar onde pessoas se reúnem em barracos para exigir direito a terra, enquanto assentamento é a área em que as famílias conseguiram o direito para construção de casas de alvenaria e produção agrícola.

Com a guia de turismo Glades Leite Ferreira foi difente. Em 2015, durante viagem com familiares do Rio Grande do Sul, onde nasceu, ela conheceu um dos acampamentos daquela região:
“A gente parou, visitou e comprou verduras. Foi uma experiência muito boa, muito particular. Hoje, nesse grupo, foi muito construtivo e de esclarecimento. Saber da realidade de tensão em que vivem, nessa espera de conseguir ficar em um lugar definitivo; o que eles plantam… Achei muito bonito que eles plantam as árvores, porque as plantas comestíveis acabam, mas as árvores ficam, deixando um legado em cada lugar por onde passam.”
