OPINIÃO

Um teto todo nosso

 Não há barreira,

fechadura nem ferrolho,

que você possa impor

à liberdade da minha mente.

 Virginia Woolf

 

  Eu não estava preparada para Virgínia, monólogo interpretado por Cláudia Abreu, no Teatro Alberto Maranhão, no sábado desse começo de junho. Desde a terça-feira, quando os amigos Eduardo e Wedma nos convidaram para a programação, imaginava que seria uma ótima oportunidade de assistir à grande atriz brasileira apresentar um ou mais textos dessa gigante da Literatura. Só depois fiquei sabendo: o enredo havia sido escrito pela própria intérprete, que trouxe uma representação sensível e perspicaz da alma da autora de Mrs. Dalloway.

O monólogo faz uma retrospectiva da vida e da morte de Virginia Woolf, a partir de um relato em primeira pessoa que inicia quando ela se atira, com os bolsos do casaco cheios de pedras, no rio Orse, onde se afogou. O fato e o detalhe do suicídio, amplamente reproduzido desde a tragédia, terminou por acrescentar à biografia de uma artista genial, o toque dramático que associou sua imagem à depressão, de modo definitivo. Virginia hoje, é tão conhecida por seu talento e originalidade, quanto por sua alma complexa.

Nascida na Inglaterra em 1882 e falecida em 1941 durante o cataclisma da Segunda Guerra Mundial, a autora de obras primas como “Orlando”, “Ao farol” e as “As ondas” viveu, desde a infância, perdas e traumas que provocaram crises de depressão e culminaram em alucinações auditivas. Cláudia opta por enfatizar o quanto o ambiente familiar e as circunstâncias foram decisivos para o desencadear das crises da escritora. “Como não enlouquecer? Ela diz à certa altura.

O diagnóstico de Virginia suscita debates entre os profissionais de saúde mental. Ela sofria de Trantorno Borderline? Especular só seria importante, se o tratamento medicamentoso e psicoterápico estivesse disponível à época. Talvez ela tivesse sobrevivido à doença, mas certamente sua obra não seria a mesma: “As folhas arruinadas de outono adquirem o esplendor de bandeiras em frangalhos que rebrilham na obscuridade das frias criptas de uma catedral, onde letras douradas, escritas em páginas de mármore, descrevem a morte em batalhas e como os ossos se tornam esbranquiçados e queimam longe nas praias indianas”.

Cláudia Abreu em cena / foto: Pablo Henriques / Divulgação

Na peça, Cláudia relatou a história de muitas mulheres que na infância encontraram uma biblioteca não destinada a elas e que talvez por esse motivo, tenha se tornado lugar de interesse. Dessa relação intensa e apaixonante resultaram escritoras que até hoje precisam defender-se de uma sociedade que ainda as subestima, cerceia, desqualifica, rebaixa e as remunera mal. Quando o pai fica impressionado com o conhecimento demonstrado pela filha, ela, magoada, pergunta algo como: “Porque pelo fato de ser mulher, eu não poderia ser inteligente?”

Eu não estava preparada para assistir outra mulher falar da minha própria vulnerabilidade quando menina (até mesmo o apelido comum no Nordeste, cabrita, a inglesa recebeu) e das dificuldades a mim reservadas por ser escritora. Comecei a chorar quando a personagem informou a uma plateia atenta: “uma mulher precisa apenas de um espaço minimamente particular, um pouco de dinheiro e um teto sobre a cabeça para escrever”. Foi quando me lembrei de mim mesma digitando em um corredor, enquanto meus filhos pulavam em volta. Jamais poderia ser como qualquer homem da minha vida, que se trancava em um escritório, por fazer total sentido que precisassem de silencio e solidão para desenvolverem suas atividades profissionais. “A mulher e a ficção, no que me diz respeito, permanecem como problemas não solucionados”, afirmou a inglesa no ensaio “Um teto todo seu”.

A atriz emocionou o publico / foto: Pablo Henriques / Divulgação

Minha segunda emoção veio quando a personagem falou da morte da mãe, ocorrida quando tinha apenas treze anos. Essa mãe, descrita como uma mulher que morre por esgotamento, é o retrato das mães e avós nordestinas obrigadas, ainda hoje, a trabalhar, cuidar da casa, da comida, da roupa, dos filhos e do esposo (muitas delas, fazendo o contraponto redentor ao mal humor de um marido e pai austero). “Você não pode ir embora. É você quem ilumina a casa!”. Claro que a lembrança da minha própria mãe veio nesse momento. Ela passou a vida em uma dupla jornada de trabalho e ainda encontrou tempo para sem importar com a felicidade da família. Quando se foi há pouco mais de um ano, a criança dentro de mim fez essa mesma pergunta.

Foi bem legal encontrar no TAM, as amigas que vivem as próprias experiências singulares como artistas da palavra escrita: Jeanne Araújo, Andreia Braz e Carla Alves. Já tive a oportunidade de dizer pessoalmente a elas que seu talento e coragem me inspiram a seguir em frente. “Imagine acordar e descobrir que se é uma fraude. Esse horror era parte da minha loucura”, escreveu Virginia Woolf certa vez. Nesta madrugada em que escrevo, sou visitada pela amiga de tantas horas, a solidão. Foi ela companheira de muitos momentos de dúvida acerca da minha capacidade. Como no caso da inglesa, seguir em frente foi menos uma obstinação e mais uma urgente necessidade de aquietar a alma.

O oficial que comandou as buscas pelo corpo da escritora afirmou que admirava sua obra e considerou a atitude (indicativa de loucura para muitos), um ato de lucidez diante do tempo catastrófico que o mundo vivia. A grande guerra entrava em seu período mais violento com a invasão da Alemanha à União Soviética e a entrada dos E.U.A. no conflito, após o ataque a Pearl Harbor.

Cláudia Abreu faz curta temporada pelo Nordeste e hoje à noite, após ter estado em Mossoró e estreado em Natal, encerrará a viagem ao Rio grande do Norte, em uma última apresentação no TAM. Espero muito que você ainda consiga comprar o seu ingresso!

 

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