CIDADANIA

Inumeráveis: A história de Maria Narcisa da Silva, uma vida de luta e afeto

O amor pelos netos e bisnetos era uma das marcas mais singulares de Maria Narcisa, também conhecida por seus lindos olhos azuis. Aos domingos, reunia a família em casa e preparava deliciosos pratos da culinária nordestina, onde o sabor era acentuado por um tempero especial. Aos 85 anos, a potiguar, filha de Cruzeta, faleceu por complicações da doença, em 2021.

Essa história soma-se a muitas outras num Memorial (https://inumeraveis.com.br/) dedicado a transformar números das vítimas do coronavírus no Brasil em prosa. “Esse espaço é para nos lembrar da ameaça invisível que alcançou o mundo todo e levou vidas. É para nos lembrar que, mais que números, foram amores que não podemos nos despedir”. É assim que um dos oito netos de Maria Narcisa, o assistente social Marcus Démetrios, define a plataforma Inumeráveis.

A ideia foi posta em prática em 2020 e tem amplitude nacional. No site, as memórias são lembradas em descrições enviadas por familiares e amigos, como a de Maria Narcisa.

A história de Maria Narcisa da Silva, divulgada no site Inumeráveis, é mais do que um registro de uma vida perdida durante a pandemia. É um tributo a uma mulher que, apesar das dificuldades, soube transformar sua própria trajetória em uma escola de amor, superação e aprendizado, deixando marcas indeléveis no coração de sua família e comunidade. Seu legado perdura nas memórias dos que a amaram e que a tiveram como inspiração para seguir adiante em suas jornadas de vida.

Maria Narcisa da Silva e um dos seus 8 netos, Marcus Démetrios

Conheça Maria Narcisa da Silva, uma mulher de fibra, nascida na cidade de Cruzeta (RN), cuja jornada de vida foi marcada por desafios, mas também pelo amor, dignidade e o orgulho de sua família.

“Maria Narcisa da Silva

Dona dos mais belos olhos azuis, fez da luta da vida a sua própria escola.

A infância marcada pela ausência da mãe e pelo trabalho doméstico em busca da sobrevivência em casa não deixou brecha para que Maria Narcisa tivesse acesso aos estudos. Foi criada com dificuldade pelo pai, que perdeu cedo, e depois pela madrasta e familiares. Na dureza da vida, escolheu o casamento precoce como um outro caminho, que lhe rendeu filhos, a violência conjugal e até a procura de restos de comida na feira para se alimentar e alimentar os filhos. Esse também não era o destino que Maria Narcisa sonhava para si. Deixou a cidade de Cruzeta (RN) com a prole a tiracolo e correu atrás de um novo futuro. Já na capital potiguar, encontrou no ofício de lavadeira à beira do Rio das Quintas o seu melhor sustento. Ela não imaginava, no entanto, que Waldemar, um ex-combatente da Marinha e alguns anos mais velho, fosse cruzar sua vida e lhe oferecer amor, dignidade e paz. Do encontro do casal nasceu um filho.

“Dona dos mais belos olhos azuis”, segundo o neto Marcus, Maria Narcisa prosperou o afeto entre os seus netos e bisnetos. Reunia a família em casa e preparava seus melhores quitutes da culinária nordestina com um tempero característico: buchada de bode, carne assada com macaxeira, feijão verde, miolo de cabeça de boi, peixe. Marcus guarda na memória não apenas os sabores apetitosos das comidas, mas a companhia à avó aos domingos de feira, quando lhe puxava o carrinho com as compras da semana. Ele ainda chora ao lembrar das mãos dela socando alho e pimenta no pilão.

A ligação intrínseca entre os dois vem desde o berço: “somos parecidos fisicamente”, ele fala com orgulho. Mais do que amor, Marcus declara gratidão profunda pela avó: “ela proporcionou meus estudos e me libertou das amarras da ignorância e da miséria que ela mesma enfrentou”. De opiniões fortes, Maria Narcisa não esmorecia quando o neto não correspondia com boas notas na escola. Punha-o ao lado da sua cadeira de balanço e lhe dava um sermão: “eram repreensões construtivas, ela resgatava seus sofrimentos e me fazia valorizar a educação recebida”. O garoto ia depois chorar de arrependimento na cama da avó e adormecia. A verdade é que as broncas deram resultado, pois o rapaz seguiu os estudos com ímpeto até a pós-graduação. A fala emocionada revela: “tivemos uma relação de criador e criatura, éramos parecidos até nas chatices. Minha avó foi o grande amor da minha vida”.

Marcus ainda herdou da avó seu gosto musical. Ela gostava de ouvir Nelson Gonçalves, Waldick Soriano, Altemar Dutra, Maria Bethânia, Roberta Miranda. Católica, escutava também com gosto as preces e músicas de Padre Zezinho, inclusive nas viagens de romaria a Padre Cícero, Frei Damião e Nossa Senhora Aparecida que fazia sempre na companhia de filha, netos e amigas.

Maria para o mundo e Narcisa para os íntimos não era mulher de deixar a vaidade de lado. Arrumava os cabelos e fazia a manicure com cores chamativas. Unhas vermelhas, perfume e adereços de ouro compunham frequentemente seu visual.

Todas as tardes ela punha a cadeira na calçada para papear com as amigas da vizinhança. “Eu a chamava de fofoqueira”, brinca Marcus. E a avó retrucava: “eu não falo da vida de ninguém, o povo é que vem na minha porta”. Esse povo da rua São Geraldo, onde ela viveu por mais de 30 anos, saiu à porta pela última vez, em lágrimas, quando aplaudiu o cortejo de Maria Narcisa na sua despedida.”

Quem deseja adicionar uma história ao memorial, participar voluntariamente ou ver as histórias contadas pelo projeto pode fazê-lo acessando o site Inumeráveis neste link.

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