Mais um passo em uma longa trajetória de luta protagonizada por familiares e vítimas da violência de Estado pela efetivação dos direitos humanos e pela centralidade das pautas da Memória, Verdade, Justiça e Reparação, para que haja uma democracia efetiva. Esse é o significado de um manifesto que exige do Estado a volta da comissão responsável pela busca e identificação das pessoas mortas e desaparecidas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
O documento, lançado no último dia 26 de junho, data internacionalmente dedicada ao combate à tortura, cobra do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a assinatura e publicação no Diário Oficial de um decreto encaminhado há mais de três meses ao Palácio do Planalto pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania pelo retorno dos trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).
Com a função de investigar, encontrar e dar uma resposta às famílias de desaparecidos políticos, assim como reconhecer mortes ocorridas em decorrência da repressão e reparar seus familiares, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos teve a sua extinção aprovada no último mês do governo de Jair Bolsonaro.
Embora a decisão tenha sido tomada sob a justificativa de que o órgão teria cumprido seu objetivo determinado por lei, após 27 anos de atuação da Comissão, poucos corpos foram identificados. No Rio Grande do Norte, três militantes políticos seguem desaparecidos: Hiram de Lima Pereira, Luíz Ignácio Maranhão Filho e Luís Pinheiro.
No manifesto, os familiares afirmam que continuam sofrendo as consequências das perseguições, torturas e assassinatos de seus entes queridos. Ao longo de várias gerações, eles têm acompanhado diferentes governos sem ter acesso às circunstâncias verdadeiras das mortes e aos corpos dos seus familiares. Carregam o sofrimento dos brutais assassinatos e do desaparecimento dos corpos.
Os parentes exigem do governo a emissão de certidões de óbito reconhecendo a responsabilidade do Estado pelas mortes dos militantes políticos vítimas do regime militar, a retomada das buscas e identificação dos corpos, oitivas com testemunhas, audiências públicas, reparações aos familiares e esforços para pressionar o Supremo Tribunal Federal a reinterpretar a Lei de Anistia e acabar com a impunidade de centenas de torturadores e assassinos.
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Desaparecido político
A condição de desaparecido corresponde ao estágio maior do grau de repressão política em um dado país. Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana. E a negação de respostas pelo Estado representa a perpetuação do sofrimento dos familiares, pela incerteza sobre o destino do ente querido.
Sobre a Comissão
Criada em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), através da Lei nº 9.140, o trabalho do órgão passa por mapear possíveis cemitérios e valas, recolher e identificar ossadas e prestar esclarecimentos às famílias, em busca de garantir a justiça e a reparação.
Trata-se de cumprir o que estava nas disposições transitórias da Constituição de 1988, reconhecendo a responsabilidade do Estado brasileiro no desaparecimento e na morte de presos políticos. Ao mesmo tempo, em que se mantém uma interpretação equivocada da Lei de Anistia, de 1979, que impede o país de avançar na punição dos crimes de tortura, assassinato, sequestro e desaparecimento pelos agentes de Estado.
Com uma transição baseada no esquecimento, a aprovação da extinção da comissão no último mês de governo de Jair Bolsonaro se insere no contexto de desmonte das políticas públicas de memória, verdade, justiça e reparação por meio da substituição de membros da CEMDP, enfraquecimento da estrutura ministerial de apoio à CEMDP, interrupções de atividades e reversão de decisões.
No primeiro ano de gestão, Bolsonaro substituiu quatro de seus sete integrantes. Foram determinadas a saída de Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Rosa Maria, João Batista e Paulo Pimenta. No lugar de Gonzaga, foi nomeado o advogado Marco Vinicius Pereira de Carvalho, ex-assessor da ministra Damares Alves, que nunca atuou na área. Filiado ao PSL, tem em seu currículo um pedido de impeachment do ministro do STF Dias Toffoli, que foi arquivado.
Bolsonaro também nomeou Filipe Barros, deputado federal pelo PSL, que defende que a comemoração à ditadura, e o coronel da reserva Weslei Antônio Maretti, que acredita que Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do centro de tortura DOI-CODI, é “exemplo para todos os que um dia se comprometeram a dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria”.
Em 5 de dezembro de 2022, Bolsonaro mexeu novamente na Comissão. Os militares Weslei Maretti e Vital Lima dos Santos foram substituídos pelo também militar Jorge Luiz Mendes de Assis, e por Paulo Fernando Melo da Costa, ligado a grupos conservadores em Brasília e que foi assessor parlamentar do senador eleito Magno Malta (PL-ES).
Com nova composição, a comissão aprovou sua própria extinção em 15 de dezembro por quatro votos a três.