Por Homero Costa
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil desde 2021 está no Mapa da Fome mais uma vez. O que é o Mapa da Fome? Trata-se de uma ferramenta que apresenta o número de pessoas que se enquadram no perfil de insegurança alimentar. São 166 países pesquisados, e o objetivo é o de medir o acesso da população mundial à alimentação.
O Mapa da Fome é publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que foi criada em 1945 e é uma das agências das Nações Unidas que visa fundamentalmente a auxiliar o combate à fome e má nutrição, e a “tornar sustentáveis as atividades agrícolas pelo mundo”. Composta por 194 Estados-membros, mais a União Europeia (UE) e, com presença em mais de 130 países, publica anualmente um relatório com dados de 166 países (“O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo”).
Um país passa a integrar o Mapa da Fome quando mais de 2,5% de sua população enfrenta falta crônica de alimentos e, para identificar esse percentual e outros números relacionados à fome e a insegurança alimentar. A FAO utiliza alguns indicadores como, entre outros, o grau de desnutrição da população (total de pessoas estimadas em situação de vulnerabilidade, que não tem acesso à alimentação).
Em 2000 a ONU criou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) com o propósito de ajudar na formulação de políticas públicas de combate à pobreza, criando oito ODMs, entre eles, o combate à fome, que vigorou até 2014. A partir de 2015, foi substituído por Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com 17 metas sendo a segunda meta o ‘fome zero’ com programas de ajuda à agricultura sustentável.
No Brasil, programas de combate à fome e a pobreza foi estabelecido como uma das prioridades do governo Lula a partir do seu primeiro mandato, em 2003. Ao longo de dois mandatos (2003-2010) foram implementadas uma série de políticas públicas, com o objetivo de combater a pobreza e a desigualdade social. Além do Programa Fome Zero (anunciado no primeiro dia do governo), houve muitos outros como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), valorização do salário mínimo, Programa Minha Casa Minha Vida e também um programa de compras de alimentos orgânicos de pequenos produtores e doação para pessoas em situação de vulnerabilidade social (além de merendas para creches, escolas, hospitais e outros programas assistenciais) e o resultado do conjunto dessas políticas foi à diminuição da pobreza e das desigualdades sociais.
Uma matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo no dia 21/10/2021 por Érica Fraga, Douglas Gravas e Gustavo Queirolo analisam uma pesquisa feita por economistas do Insper mostrando que “a disparidade na distribuição de recursos no país caiu de forma ininterrupta entre 2002 e 2015, voltando a subir a partir de 2016, após o golpe (impeachment da presidente Dilma Rouseff) e início do governo Temer, ou seja, houve uma redução da desigualdade no país no período de 2002 a 2015 (gestões de Lula e Dilma Rousseff). De acordo com o levantamento, o índice Gini, que mede a desigualdade, recuou de 0,583 em 2002 para 0,547 em 2017. Isso significa que aproximadamente 16 milhões saíram da pobreza.
Em 2011 o governo de Dilma Rousseff implementou o Plano Brasil sem Miséria, que tinha como objetivo superar a extrema pobreza até 2014 (acesso a serviços públicos para promover educação, saúde e cidadania etc.) e o resultado, consideradas também às políticas públicas anteriores, foi à saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014, ao alcançar a meta dos Objetivos do Milênio, de reduzir pela metade a população que enfrentava a fome, revelando uma melhoria no desenvolvimento humano e redução da desigualdade.
Entre 2014 e 2019, de acordo com a ONU, o Mapa da Fome teve poucas variações. No entanto, a partir de 2020 houve uma piora dos índices de pobreza e miséria na maioria dos países pesquisados, uma das consequências dos impactos socioeconômicos da pandemia da COVID-19, mas também como (i)responsabilidade dos governos que não conseguiram atingir as metas estabelecidas em relação ao combate à pobreza e a fome.
No entanto em 2022, resultado do aumento do desemprego, desvalorização do real, inflação e principalmente a redução de políticas sociais de combate à fome e as consequências da pandemia da COVID 19, o país entrou novamente no Mapa da Fome. Dos 166 países pesquisados pela FAO entre 2019 e 2021, 118 deles entrou no Mapa da Fome, entre eles, o Brasil, que passou a ocupar o 94º lugar. No relatório sobre o panorama da Insegurança Alimentar e da Nutrição no mundo da FAO, o número de pessoas no Brasil com insegurança alimentar grave entre 2019 e 2021 quase quadruplicou em relação ao período de 2014 a 2016.
Uma pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) divulgada no dia 8 de junho de 2022 (“Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”), feita entre novembro de 2021 e abril de 2022, constatou que em 2022 a fome atingiu seu pior patamar no país desde os anos 1990 “ com 33,1 milhões de pessoas que não tem o que comer (…) São 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano (…) a pesquisa mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (fome). O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990 (…) De acordo com o 2º Inquérito, em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar. É um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018”. (https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/).
No dia 26 de junho de 2023 foi divulgada mais uma Pesquisa da Rede Penssan (“Insegurança alimentar e desigualdades de raça/cor da pele e gênero)” na qual revela que as famílias chefiadas por mulheres negras são as que mais sofrem com a insegurança alimentar grave.
Ao se analisar insegurança alimentar, a pesquisa da Rede Penssan divide em três níveis: grave, quando a pessoa convive com a fome dentro de casa; moderada, quando a qualidade dos alimentos está comprometida e a quantidade não é suficiente para todos da família e leve, quando há redução da quantidade dos alimentos consumidos. A insegurança alimentar moderada atingiu 32,3 milhões de pessoas, a insegurança alimentar leve, 59,7 milhões e somadas aos 33,1 milhões de grave, somam 125 milhões de pessoas com insegurança alimentar no país.
Os dados da pesquisa adicionam os itens raça e cor, e os responsáveis pelo domicilio, homem ou mulher e revelam que a fome é mais frequente em lares que tem a mulher como referência (“chefe de família”) e em especial, mulheres negras. A insegurança alimentar grave estava presente em 12% dos domicílios nos quais era um homem e em torno de 20% quando era uma mulher.
A fome portanto, tem cor e gênero: a pesquisa constatou que a maioria dos casos era em moradias de pessoas pretas (homens e mulheres) e entre pessoas brancas, era quase a metade em relação às pessoas pretas (as informações sobre pessoas autodeclaradas amarelas ou indígenas não foram incluídas). Nesse sentido o relatório afirma que “A interseccionalidade entre gênero e raça produz um efeito ‘multiplicativo’ de discriminação e exclusão social que tem levado as mulheres negras a situações de maior vulnerabilidade social, econômica e de saúde”.
Essa situação foi agrava com a pandemia quando houve um crescimento do desemprego (especialmente em 2021), constatando-se o óbvio: a ausência de acesso regular e permanente à renda determina em grande parte os índices de insegurança alimentar, ou seja, há uma relação entre fome e trabalho (no caso, ausência de emprego formal) e não por acaso a fome foi (é) mais frequente, entre desempregados e trabalhadores informais, comparados com os que têm carteira assinada.
Outro aspecto revelado na pesquisa é que com a pandemia e menos emprego levou a um maior endividamento das pessoas, crescendo a inadimplência e como mostra o relatório, o endividamento estava associado a níveis maiores de insegurança alimentar.
Os que os dados da pesquisa da Rede Penssan revela a respeito da situação alimentar no Brasil evidenciam a permanência de desigualdades estruturais no qual as mulheres e pessoas negras são as principais vítimas, com maiores taxas de desemprego e endividamento. Como diz o relatório “As estruturas sociais vigentes, o racismo e o sexismo contribuem de forma determinante para o acesso a recursos materiais e sociais”.
Outro aspecto que contribuiu para o retorno do Brasil ao Mapa da Fome foi o papel do governo federal, o que deixou de ser feito e o documento revela os efeitos da desestruturação de políticas públicas de proteção social e combate à fome desde o governo de Michel Temer (2016-2018).
Em 2022 quando foram divulgados os dados da pesquisas Penssan, revelando a existência de 33,1 milhões de pessoas passando fome no Brasil, a única atitude do presidente da República foi questionar os dados considerados como “exagerados” e “demagógicos”. A contestação foi apenas mais um aspecto do negacionismo de alguém que mesmo com dados consistentes sobre as vítimas (fatais e infectados) na pandemia e o crescimento do desmatamento (entre outros exemplos), em vez de procurar minimizar esses problemas, questionou os dados apresentados.
E mesmo com o Brasil de volta ao Mapa da Fome em 2022 o governo cortou, sistematicamente, verbas do programa Alimenta Brasil, principal política de aquisição de alimentos via agricultura familiar e sem recursos e auxilio do governo, muitas cooperativas que ofereciam comida para famílias em situação de vulnerabilidade, encerraram suas atividades, da mesma forma ocorreu com projetos assistenciais. Em 2019, entre outras medidas, o governo fechou 27 armazéns da Conab, onde eram estocados alimentos (como os produzidos pela agricultura familiar) e responsáveis pela distribuição e controle dos alimentos e preços, proteção a pequenos agricultores e importante no combate à fome (a maioria do plantio de alimentos vem das pequenas propriedades rurais, de pequenos produtores de feijão, verduras, legumes, ovos, frutas arroz etc.) nesse sentido, o papel dos armazéns são fundamentais, só para citar um exemplo, segundo dados do Condsef (Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal) em 2015, só de arroz, havia um estoque de mais de 1 milhão de toneladas. Em 2020, eram apenas 22 (https://www.condesef.org.br).
Para citar apenas um exemplo: comparado as doações de 2011, houve uma queda em 2022 de 76%, de 491.260 toneladas contra 114.043 em 2022 (https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2022/11/12/esvaziado-programa-federal-de-aquisicoes-de-alimentos-ve-doacoes-despencarem.ghtml).
O que se constatou a partir de 2016, com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e especialmente no governo Bolsonaro (2019-2022) foi um grande retrocesso em relação aos esforços e medidas de governos anteriores (2003-2015) para combater a pobreza e a fome.
Quanto ao atual governo Lula, desde a campanha eleitoral de 2022, estabeleceu o combate à fome e a pobreza como uma de suas prioridades, como havia sido no primeiro governo (2003-2006). Hoje, com os dados disponíveis o governo sabe da gravidade do problema, seus antecedentes e consequências e assim pode implementar políticas públicas com ações direcionadas para as pessoas mais necessitadas.
Além da necessidade de investimentos (não eleitoreiros, ou seja, que crescem em ano eleitoral), houve também a de corrigir as distorções de programas como Auxilio Brasil (que substituiu o Bolsa Família). Em uma solenidade realizada em Brasília no dia 9 de fevereiro de 2023, o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias, afirmou que havia pelo menos 2,5 milhões de pessoas utilizando o benefício de forma irregular.
Quatro meses depois, em junho de 2023, o MDS anunciou o repasse de R$ 275 milhões a estados, municípios e ao Distrito Federal para o funcionamento regular e a recomposição do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Desse total, referente ao mês de maio, R$ 158,9 milhões são destinados a serviços, R$ 32,5 milhões ao Criança Feliz e R$ 51,1 milhões correspondem ao Índice de Gestão Descentralizada do Programa Bolsa Família (recriado no governo Lula). No acumulado de janeiro a junho de 2023, os valores transferidos chegam à R$ 1,72 bilhão, três vezes mais do que o que foi repassado no mesmo período de 2022.
E este é mais um grande desafio para o governo Lula: retirar novamente o Brasil do Mapa da Fome. E uma das primeiras medidas foi à recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que havia sido extinto em 2019, assim como o encerramento de programas como Segurança Alimentar e Nutricional, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que tinha sido uma das principais ferramentas para retirar o Brasil do Mapa da fome em 2014.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) é essencial para monitorar as ações entre ministérios e os governos federal, estadual e municipal (controle de estoques de alimentos etc.,) e foi recriado através da Medida Provisória nº 1.154/2023, ao qual compete “assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e na definição de diretrizes para a garantia do direito humano à alimentação, e integrar as ações governamentais com vistas ao atendimento da parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas, em especial o combate à fome”.
Para retirar o Brasil do Mapa da Fome é necessária a articulação de políticas macroeconômicas, sociais, agrícolas etc., e iniciativas nesse sentido, não faltam e é isso que todos esperam: a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais.