No ensaio Verdade e política, publicado no livro Entre o passado e o futuro (Editora Perspectiva, 1997), a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) escrito em função das controvérsias que se seguiram após a publicação do livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963) afirma que podemos chamar de verdade aquilo que não podemos modificar e que, claro, se contrapõe a mentira e que “Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra”, e que ninguém havia até então incluído a sinceridade entre as virtudes políticas e sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao oficio não só do político ou demagogo, como também do estadista (p.283).
Para ela “a verdade factual não é mais auto-evidente do que a opinião, e essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam opiniões acham relativamente fáceis desacreditar a verdade factual com simplesmente outra opinião” (p.301). Assim, a verdade nunca esteve entre as virtudes políticas e mentiras sempre foram (fartamente) utilizadas como instrumentos para a conquista e manutenção do poder político.
Nesse sentido, a marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nenhum dos quais se reflete sobre a veracidade pessoal e sim a falsidade deliberada, a mentira.
No artigo Hannah Arendt, Trump e a mentira na política publicado no dia 14 de julho de 2020 no jornal Folha de S. Paulo, Federico Finchelstein autor do livro Uma breve história das mentiras fascistas (Editora Vestígio, 2020), afirma que o melhor exemplo para analisar a irracionalidade das crenças das pessoas em relação às mentiras dos governantes era estudar a ideologia do fascismo que “não era uma mentira simples e atroz, mas um conjunto de falsidades vividas e acreditadas por milhões de pessoas” e que “os historiadores do fascismo precisam entender como os fascistas justificam suas mentiras” e assim “poderia nos ajudar a entender as mentiras políticas do presente” e indaga: Por que os fascistas e agora os líderes de extrema direita pós-fascista, como Trump e Bolsonaro, acreditam que suas mentiras estão a serviço da verdade?”“.
Em relação ao fascismo (e suas mentiras) Hannah Arendt é para Finchelstein uma pensadora central para compreender por que tantas pessoas estavam convencidas de que a ideologia fascista representava uma verdade, quando além da violência, racismo etc., tinha como características hipocrisias e mentiras. E afirma que na análise que ela fez do fascismo é que era uma mentira absoluta, com efeitos políticos devastadores “que transformaram deliberadamente a mentira em realidade”.
E cita a análise que ele fez do caso Eichmann, na qual equiparou a adesão à mentira de Eichmann a uma sociedade inteira “protegendo-se contra a realidade e a factualidade com exatamente os mesmos meios, autoengano, mentiras e estupidez que agora tinham sido inoculados na mentalidade de Eichmann” e salienta que na realidade seu passado nazista e seus crimes foram o resultado do profundo compromisso dele com o que considerava ser a verdade ideológica essencial do nazismo. E vale não apenas para os nazifascismo, como todos os estados e governos autoritários, transformando seguidores em fanáticos, em defesa de um líder, avessos aos fatos, a verdade e precisamente esse seu aspecto mais perigoso.
Como Hannah Arendt afirmou a história da ditadura fascista foi baseada em mentiras. “O imaginário mítico que os fascistas colocavam como realidade nunca pôde ser corroborada porque se baseava em fantasias de domínio total no passado e no presente. A mesma situação é operativa no presente com as atuais tentativas de negar ou minimizar a pandemia. E, como no caso do fascismo, o resultado dessas mentiras é letal”.
Em guerras, resultado de decisões políticas, o uso de mentiras é essencial tanto em relação aos inimigos como para manipular a opinião pública de seus respectivos países. Há muitos exemplos, como as invasões do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003) pelos Estados Unidos, duas das muitas intervenções militares em outros países e usou de mentiras para motivar apoios. No caso do Iraque, a de que havia provas de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, que era aliado de Osama Bin Laden, e que teve responsabilidade nos ataques de 11 de setembro de 2001.
Mentiras que só foram reveladas bem depois da invasão (que teve como consequência milhares de mortes).
Outro exemplo: em junho de 1971, o jornal The New York Times teve acesso ao um documento que ficou conhecido como Os Documentos do Pentágono e publicou uma série de matérias sobre a real participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Os documentos mostraram como o governo desde o início mentia descaradamente sobre a guerra e suas versões eram as que prevaleciam junto à opinião pública. Trata-se do que teria ocorrido no golfo de Tonquim no dia 2 de agosto de 1964, quando o governo foi informado que três navios do Vietnã do Norte se dirigiam rumo ao destróier norte-americano (USS maddox) que estava em missão de vigilância e espionagem na costa do país carregados com torpedos. Alegando que os navios teriam sido atacados, os EUA declaram guerra ao Vietnã e só 50 anos depois, documentos da Agência de Segurança Nacional, a NSA, vieram a público afirmar que a presença das lanchas torpedeiras da marinha norte vietnamita nunca foram confirmadas, ou seja, agentes da NSA distorceram os fatos e ajudou a precipitar e justificar a guerra, com as conseqüências conhecidas.
No livro Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional (Editora Zahar, 2012) John Mearsheimer afirma que “Líderes que mentem para seus cidadãos pelo que acreditam serem boas razões estratégicas podem, no entanto, produzir danos significativos a seu corpo político, fomentando uma cultura de desonestidade. É por isso que a difusão do medo e os acobertamentos estratégicos são os tipos mais perigosos de mentiras que os líderes podem contar”.
Outra parte da mentira é o seu acobertamento estratégico interno são mentiras que procuram ocultar suas políticas fracassadas, os erros (nunca reconhecidos) ou políticas malsucedidas.
Em relação ao Brasil, algum dos usos de mentiras na política, historicamente, foi analisado no livro “Você foi enganado: mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil” de Chico Otavio e Cristina Tardáguila (Editora Intrínseca, 2018). “O livro “é composto por algumas das muitas histórias que envolvem mentiras, exageros e contradições que marcaram a vida política do país no último século” e no qual” os políticos têm usado a mentira como um instrumento de conquista e manutenção de poder”.
São muitos exemplos. Das cartas falsas atribuídas a Artur Bernardes em 1921 nas quais atacava o clube militar e seu dirigente (Hermes da Fonseca); o plano Cohen em 1937, um documento falso atribuído aos comunistas e usado como pretexto para a instauração da ditadura do Estado Novo (1937-1945); a negação oficial das torturas, assassinatos e prisões políticas na ditadura militar (1964-1985); as mentiras sobre a doença de Tancredo Neves em 1985, até as mentiras de Michel Temer para justificar o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. Como o livro foi publicado antes das eleições de outubro de 2018, certamente seria enriquecido com muitos exemplos da máquina de produzir mentiras, especialmente via redes sociais, do candidato vencedor e depois também como presidente da República.
Em relação às mentiras, declarações falsas ou distorcidas, segundo o site Aos fatos, em matéria publicada no dia 8 de março de 2022, com checagens feitas semanalmente, afirma que em 1.162 dias como presidente, Bolsonaro foram 5.004. Os dados “agrega todas as declarações de Bolsonaro feitas a partir do dia de sua posse como presidente”. https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/10601/?page=122
E entre 1º de junho a 14 de outubro de 2022, foi publicada outra matéria sobre o tema, por Leandro Becker, com o título As mentiras e os exageros mais repetidos por Bolsonaro na campanha (1º turno das eleições de 2022). Foram selecionada 15, entre elas, sobre o fim da corrupção (“no meu governo não teve corrupção”), criação do PIX (criado por uma equipe do Banco Central em 2018), redução do feminicídio (houve um aumento), afirmações falsas sobre a gestão da pandemia, afirmativas de que o PT foi contra o Auxilio Brasil (na verdade, todos os parlamentares votou a favor da MP 1.076/2021 que estabelecia o valor mínimo de R$ 400,00), incêndios na Amazônia (que aumentou em vez de diminuir) e dados questionáveis também sobre benefícios sociais, dívidas da Petrobrás e fraudes no sistema eleitoral (14 das 18 frases ditas por ele sobre o tema foram classificadas como falsas). https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2022/10/14/mentiras-repetidas-bolsonaro
No entanto, difundidas nas suas redes sociais e entrevistas em programas como o Pânico, SBT, Rede Tv, Podcast Flow, Rádios e Televisão Jovem Pan etc., teve ampla repercussão junto ao seu eleitorado.
No artigo A mentira na política e o ideário fascista, publicado no jornal o Estado de S. Paulo (11/04/2019), Eugenio Bucci, ao analisar o que chamou de “indústria da mentira” se refere, entre outras mentiras (e imbecilidades) a afirmativa segundo a qual o nazismo era de esquerda e que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado. Para ele as “mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram o público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo”.
Trata-se de imposturas, uma verdadeira usina de mentiras “controlada pelos governistas (que) planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem”.
Atualmente a mentira se potencializa com a expansão e influência das redes sociais e se integra no que se tem chamado de pós-verdade, quando crenças e convicções têm se sobreposto aos fatos. Como diz Matthew D’Ancona em Pós-verdade. A nova guerra contra os fatos em tempo de fake news (Faro Editorial, 2018) (p.128): “Na longa decadência do discurso público que finalmente conduziu à era da pós-verdade, a classe política e o eleitorado conspiraram em favor da degradação e debilitação do que dizem um ao outro. Promessas irrealizáveis são compatibilizadas com expectativas absurdas; os objetivos inalcançados são ocultados pelo eufemismo e pela evasão; o hiato entre retórica e realidade gera desencantamento e desconfiança. E em seguida, o ciclo recomeça. Quem ousa ser honesto? E quem ousa dar importância à honestidade?”.