Entidades internacionais como V-Democracia (V-Dem/Suécia) do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), o Instituto Freedom House (Estados Unidos) e o Instituto Latinobarómetro (Chile) têm publicado relatórios com ampla base de dados sobre a democracia. Os dois primeiros, com metodologias distintas, fazem pesquisas em diversos países do mundo enquanto o Latinobarómetro, desde 1995, faz pesquisas em 18 países da América Latina.
O V-Dem, por exemplo, publicou em março de 2021 um documento com dados relativos a 202 países, com 450 indicadores de democracia (estabelece índices que variam de 0 a 1, no qual 0 representa um regime ditatorial e 1 uma democracia plena) e uma das constatações é que naquele momento, mais de um quarto da população mundial vivia em democracias em retrocesso e se somados os regimes autoritários e híbridos (com tendência à degradação democrática) seriam em torno de 70% dos países.
E o resultado das pesquisas do Instituto Freedom House constatou índices similares ao do V-Dem mostrando que desde 2018 havia uma queda acentuada dos índices de liberdade e democracia no mundo.
Os dados desses (e de outros institutos) têm constatado uma situação preocupante: a deteriorização da democracia, revelando que os espaços democráticos têm encolhido expressando o que se têm chamado de um colapso da democracia ou uma recessão democrática no mundo.
Em um livro publicado em 2015 O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo Larry Diamond, sociólogo norte-americano e considerado um dos principais estudiosos contemporâneos da democracia afirma que o processo do colapso da democracia tem se aprofundado com o passar dos anos e que em vez de se ter mais democracia no mundo, tem ocorrido o inverso. Um dos dados do livro é que entre 2000 e 2014 foram contabilizados 25 colapsos democráticos no mundo “não apenas através de flagrantes golpes militares, mas também por meio de degradações graduais de direitos democráticos e procedimentos que por fim empurraram a democracia acima do limiar do autoritarismo”.
No relatório do IDEA de 2022, consta que metade das democracias do mundo enfrentava uma erosão de seus fundamentos, dos quais sete países com acentuado retrocesso democrático : Brasil (no governo Bolsonaro), El Salvador, Hungria, Polônia, Estados Unidos (no governo de Donald Trump), Índia e Ilhas Maurício.
Na América Latina, o relatório mais recente sobre a democracia é do Latinobarômetro publicado no dia 21 de julho de 2023 (Informe 2023) intitulado A recessão democrática na América Latina. Foram aplicados 19.205 questionários em 17 países (exceção da Nicarágua “porque não existiam as condições de segurança necessárias para os entrevistadores na ditadura de Daniel Ortega”).
Os questionários foram aplicados no início de 2023, entre os dias 20 de fevereiro e 23 de março em dez países: Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru, Uruguai e Venezuela e entre os dias 23 de março a 18 de abril, em mais sete: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Republica Dominicana, Panamá e Paraguai.
E uma das principais constatações é de que há um declínio do apreço pela democracia, expresso na insatisfação com seu funcionamento (54% não se importariam com um governo não democrático, desde que resolvesse os problemas do país, como desemprego, pobreza, inflação alta etc.), no aumento da indiferença pela forma do regime político, na preferência (e atitudes) em favor do autoritarismo (voto em defensores de ditaduras etc.), e com o colapso do desempenho dos governos, o aumento da descrença em relação aos partidos políticos (que ocupam quase sempre as últimas posições em termos de credibilidade popular: sete em cada dez entrevistados não acreditam nos partidos políticos).
Segundo o relatório, a democracia em vários países da América Latina se encontra em estado crítico, e destaca o que chamou de ‘debilidade das elites’ simbolizadas nos presidentes da república. No levantamento de 1985 a 2023, 21 foram condenados por corrupção, 20 não terminaram seus mandatos, outros romperam as regras da reeleição mudando-as para se beneficiarem com sucessivas reeleições. Os países que não há reeleição para presidente são Colômbia – desde 2015- Honduras, Guatemala – os três com voto facultativo – México e Paraguai) e com reeleições indefinidas são Bolívia, Nicarágua e Venezuela.
E segundo o relatório 1/3 dos eleitos desde que se iniciou a transição das ditaduras militares para regimes democráticos transgrediram as regras da democracia.
O Latinobarómetro examina o respaldo à democracia incluindo três alternativas: apoio, indiferença e a defesa do autoritarismo. Segundo o relatório, a insatisfação com a democracia foi apontada por 69% das 19.205 pessoas consultadas, embora tenha havido um recuo de três pontos porcentuais desde 2018, quando atingiu o recorde de 72%, mesmo assim são índices muito altos.
O que explica? Que motivos geram esta recessão democrática? Há uma conjunção de fatores. Segundo o Latinobarômetro ao analisar a região se pode observar que há poucos países sem governantes acusados ou condenados por corrupção e afirma que são as elites que têm contribuído para minar a democracia e assim permanecerem no poder, e também os personalismos e a debilidade dos partidos políticos que entregam ainda mais poder a pessoas desqualificadas que são “alguns dos elementos mais perversos que afetam a democracia (…) A corrupção distorce o poder do voto ao intervir nas campanhas eleitorais com enormes somas de dinheiro e provoca uma competição desleal. A corrupção do poder a nível presidencial é uma forma brutal de minar as bases da democracia porque leva à presidência pessoas que sem esses fundos ilícitos não teriam êxito”.
Associado a esses fatores há as crises econômicas que influenciam negativamente a democracia, com o aumento das desigualdades, o crescimento da pobreza e da miséria, ampliando a ausência do que o relatório chama de ‘bens políticos’ que são negados à maioria da população como a igualdade perante a lei, a justiça, a dignidade e a justa distribuição da riqueza, enfim, o colapso do desempenho dos governos na capacidade de implementar políticas públicas que se revertam em benefícios reais à população e não usados apenas em períodos eleitorais ou com objetivos eleitoreiros.
Ao se analisar os dados do Latinobarômetro desde 1995 os anos de maior apoio a democracia foram 1997, 1998 e 2010 e a partir deste ano, há um declínio durante mais de uma década. Em 2010 o apoio era de 63% e em 2023 caíram 15 pontos percentuais: 48%.
Em relação ao Brasil, os dados da pesquisa do Latinobarômetro de 2023 indica que a democracia tem apoio de 46%, aumentando seis pontos percentuais desde 2020 (era 40%), o mesmo percentual quanto à indiferença do tipo de regime diminuiu (de 36% para 30%) entre 2020 e 2023, mas de qualquer forma, o apoio à democracia melhorou, mas segue tendo menos de 50% de apoio (o que talvez explique os resultados da eleição presidencial de 2022, com o apoio de quase 50% de votos de Bolsonaro).
O fato é que desde 2017 com o golpe contra Dilma Rousseff, até 2022 (portanto nos governos de Michel Temer Jair Bolsonaro) houve uma queda significativa de apoio à democracia, além do crescimento de apoio a uma ditadura, não chegam a 1/3 os satisfeitos com a maneira como sistema político funciona no país (o que vale para a América Latina de uma maneira geral: em quatro medições consecutivas, 2017, 2018, 2020 e 2023 “o resultado indica que menos de um terço dos cidadãos latinoamericanos estão satisfeitos com a democracia”).
E um grave problema para a democracia é que há um alto índice de indiferentes quanto ao tipo de regime político, descontentes com seu funcionamento e descrentes dos partidos, expressas nos índices de abstenções, votos em brancos e nulos, com poucas variações desde o início das pesquisas em 1995.
Há também um aspecto relevante constatado na pesquisa que é em relação aos jovens na América Latina e ao próprio futuro da democracia: o menor engajamento em relação à democracia “Quanto menor a idade, mais autoritárias são”. O apoio à democracia foi declarado por apenas por 43% de pessoas entre 16 a 25 anos e defende que “há de se formar democratas com educação e socialização democrática”.
A constatação é que há um déficit de percepção dos benefícios da democracia por parte expressiva da população, o que impõe enormes desafios para os governos democráticos, como o de Lula no Brasil, depois de quatro anos de um governo de extrema direita que deixou um legado de retrocessos, de ataques à democracia e suas instituições, além do crescimento da intolerância, da violência (contra as mulheres, os pretos, pobres etc.), do machismo, homofobia, racismo, negacionismo científico e ambiental, rejeição a organismos internacionais de direitos humanos, exploração abusiva da religião e discursos de ódio.
O que o relatório afirma ser uma recessão democrática deixa a região vulnerável, aberta ao populismo e a ascensão de regimes autoritários e inviabiliza o processo de consolidação das democracias. Nesse sentido, a vitória eleitoral de Lula em 2022 e o seu governo a partir de 2023 é fundamental por barrar um processo autoritário que estava em curso em um governo de extrema direita que atentava contra a democracia, daí a necessidade de se retomar a confiança e a participação política democrática, de zelar pela democracia e suas instituições, de se ter um processo de educação política, de políticas sociais de efetivo combate às desigualdades, a pobreza, a fome, a miséria, de fortalecer os espaços de representação e controle social, de se defender os valores democráticos e a capacidade de diálogo, mas também combater populistas autoritários, à direita e extrema direita e que se afirme o Estado Democrático de Direito, como referido no art. 1º da Constituição de 1988 que tem entre outros fundamentos, a soberania popular e a dignidade da pessoa humana.