“Já que existe no sul esse conceito Que o nordeste é ruim, seco e ingrato
Já que existe a separação de fato
É preciso torná-la de direito”
O trecho acima é da canção/repente “Nordeste Independente”, dos anos 80, parceria do escritor, compositor e roteirista, Bráulio Tavares com Ivanildo Vilanova, um dos poetas repentistas mais conhecidos e respeitados do Brasil. Trata-se de um bem-humorado (e utópico) manifesto contra a discriminação historicamente sofrida pelo Nordeste, que gerou alguma polêmica, fez sucesso e ganhou uma emocionante gravação de Elba Ramalho, facilmente enconrada no YouTube.
Fazia anos que eu não ouvia a música ou qualquer referência aos versos, acabei ouvindo-a – e na íntegra – neste domingo caminhando . Na verdade, a poesia acabou sendo trazida à tona devido a uma declaração infeliz e canalha do governador de Minas Gerais Romeu Zema, ao Estadão, semana passada, quando criticou a região Nordeste e defendeu um consórcio Sul-Sudeste que deseja “protagonismo político”. Enfim, insinuou um conflito entre as regiões, quase pedindo uma separação.
A fala do governador mineiro foi imediatamente respaldada pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Parece insanidade, mas como disse Polônio sobre Hamlet, há método nessa loucura. Zema é tosco, burro, tipo de empresário brucutu que conheci aos montes ao longo da vida de jornalista. Leite é sofisticado, carismático, gay assumido e faz parte de uma elite que se sente superior, cujo modus operandi também sei de longe e sei de cor. Em comum entre os dois encostos, a vontade de se apropriar do espólio eleitoral do politicamente finado Bolsonaro, ou seja, os votos da extrema direita e da direita moderada. Com olho na eleição presidencial de 2026, claro. A mídia tradicional vai cobrir até bocejo dessa dupla.
Mas cabe à Esquerda não reverberar esse misto de alucinação e estratégia. Claro que é necessário reação institucional, como a veemente fala do ministro da Justiça Flávio Dino e a declaração e a nota assinada pelo presidente do Consórcio Nordeste, o governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB). “Ao defender o protagonismo do Sul e Sudeste, Zema indica um movimento de tensionamento com o Norte e o Nordeste, sabidamente regiões que vem sendo penalizadas ao longo das últimas décadas dos projetos nacionais de desenvolvimento. Enquanto Norte e Nordeste apostam no fortalecimento do projeto de um Brasil democrático, inclusivo e, portanto, de união e reconstrução, a referida entrevista parece aprofundar a lógica de um país subalterno, dividido e desigual”, diz a nota.
Zema mente quando afirma que “nós queremos – que é o que nunca tivemos – protagonismo político”. Qualquer um que tenha estudado o básico de História do Brasil no primário (atual ensino Fundamental, que não parece ser o caso dele, sabe que durante décadas pós-monarquia vivemos a “República do café com leite”, na qual políticos de São Paulo e Minas, ricos e poderosos e/ou militares, se revezavam no poder, tradição quebrada apenas por Getúlio Vargas (gaúcho) e sepultada de vez por Juscelino (mas que também era mineiro).
O paradoxo é que o Nordeste vem se desenvolvendo acima da média do Brasil nos últimos anos e em muitos estados apresenta índices de desenvolvimento humano e qualidade de vida superiores ao de estados do Sul/Sudeste. Recordo que quando trabalhava na Gazeta do Oeste, em Mossoró, nos anos 1990 escrevi em coluna que mantinha, citando a canção de Braúlio e Ivanildo, que o Nordeste ficar independente talvez não fosse tão vantajoso, já que dominado pelas oligarquias e poderosos (à época o RN era governado por José Agripino, Pernambuco por Jarbas Vasconcelos e Bahia por Antônio Carlos Magalhães, por exemplo). Alguns desses aí fizeram bons governos, não se pode negar, mas era também indisfarçável a afinidade que sentiam com os poderosos do Sul/Sudeste e a vontade que a região mantivesse o status quo de eterna necessitada de assistencialismo.
Hoje a situação é bem diferente. Basta observar que o RN tem no poder uma professora oriunda do movimento sindical e de família simples do interior da Paraíba. Na Bahia, Jerônimo Rodrigues Souza, o governador, é um professor e engenheiro agrônomo. Guardadas as devidas proporções e utopias e lembrando do simbolismo de Lula, presidente em terceiro mandato, ser do interior pernambucano, migrante pobre em São Paulo, fica até mais fácil acreditar atualmente nessa parte da canção:
“Jangadeiro seria o senador
O cassaco de roça era o suplente
Cantador de viola, o presidente
O vaqueiro era o líder do partido
Imagina o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente
Em Recife, o distrito industrial
O idioma ia ser nordestinense
A bandeira de renda Cearense
“Asa Branca” era o hino nacional
O folheto era o símbolo oficial
A moeda, o tostão de antigamente
Conselheiro seria o inconfidente
Lampião, o herói inesquecido
Imagina o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente
O Brasil ia ter de importar
Do nordeste algodão, cana, caju
Carnaúba, laranja, babaçu
Abacaxi e o sal de cozinhar
O arroz, o agave do lugar
O petróleo, a cebola, o aguardente
O nordeste é auto-suficiente
O seu lucro seria garantido
Imagina o Brasil ser dividido
E o Nordeste ficar independente”
Enfim, sabemos todos que Zema e por extensão Leite, Tarcisio e os “herdeiros” do bolsonarismo, querem o conflito por razões político-eleitorais. Também sabemos que a ideia de separação é um delírio, que vai contra a Constituição e contra a própria lógica com a qual foi forjado o país, nação de um único idioma, de multiplicidade étnica e cultural. Mas as declarações tacanhas do governador de Minas vão jogar holofotes sobre a situação do Nordeste (de desenvolvimento e índices positivos) e nas contradições do chamado “Sul maravilha”. Em tempo: filho de pai potiguar e mãe carioca e tendo família em Estados diversos de várias regiões, sei bem da diversidade deste país continental. A ideia de um Nordeste independente é lúdica e vale o romantismo. Mas na prática o que está se consolidando é um Nordeste sólido economicamente, com gestões responsáveis e com cada vez mais investimentos. Que assim seja.