OPINIÃO

O preço da liberdade

Styvenson Valentim (Podemos), eleito para representar o povo do Rio Grande do Norte durante oito anos no Senado Federal, está com um projeto de lei na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) para alterar duas Leis que tratam, concomitantemente do tempo de cumprimento de pena e doação de órgãos. Grosso modo, ele propõe o seguinte: que apenados possam trocar um rim, um pulmão ou uma córnea por 25% de redução de suas penas. Eu li essa notícia aqui no Saiba Mais, que trazia aspas do senador eleito afirmando que tal medida daria uma espécie de “oportunidade de empatia, de solidariedade, de humanidade, de devolver para a sociedade algo que foi retirado” (sic). A gente pode chamar isso de barganha também.

Não é a primeira vez que surgem parlamentares tentando propor mudanças na lei que regulamenta a doação de órgãos no Brasil. A primeira Lei, de 1992, estabelecia a doação como algo voluntário. Em 1997, a lei 9.434 tratava do mesmo tema dispondo que a doação deveria ser de forma gratuita, em vida ou após a comprovação irrefutável de morte encefálica. Em 2001, uma nova lei concedeu à família a decisão de doar os órgãos do ente falecido. Em 2004, o projeto de Lei 3.857 do então deputado federal de São Paulo, Irapuan Teixeira, propunha a doação compulsória de órgãos de condenados a penas superiores a 30 anos de reclusão. O projeto foi arquivado.

Não é de hoje que as Leis são utilizadas como objeto de favorecimento de grupos dominantes. Aqui no Brasil, o último país a abolir a prática de escravidão humana, criou a Lei do Ventre Livre em 1871, que estabelecia que os filhos de mulheres escravas nasceriam livres no império a partir daquele ano. E mais, o inciso primeiro, do artigo 1, dizia o seguinte “os ditos filhos menores ficarão em poder ou sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos”. Ou seja, depois dessa idade, pela lei, aquele sujeito de oito anos ficaria sob a guarda do Estado e os senhores receberiam indenizações pela “perda” dos infantes livres. Na época do Füher alemão, por exemplo, a legislação foi conhecidamente utilizada para satisfazer suas vontades e sua sanha discriminatória e persecutória contra os judeus.

Voltemos a falar sobre a proposta do parlamentar que ganhou notoriedade e ascensão política por sua sanha justiceira contra os cachaceiros motoristas de plantão. Saiamos de nossas próprias bolhas e concepções individuais sobre o sentimento do que é justo e humanitário e pensemos no respeito a o que é ser humano em sua inteireza, e não unicamente em seu delito. No argumento de Valentim fica claro que ele propõe que o apenado “pague” com seus órgãos uma parcela de sua liberdade. Bom, alguém pode pensar, que é uma opção, uma escolha, doa quem quer e tal. Será? Não estaria implícita a ideia de coisificação e de comercialização do corpo humano para tal fim? Quão livre seria o poder de decisão de alguém que está encarcerado e disposto a trocar essa condição pela sonhada liberdade? Será que essa condição por si só não confere uma vulnerabilidade, capaz de influenciar em decisão tão séria e que deveria, sobremaneira, ser altruísta? Fazer o bem, ou seja, doar um órgão do próprio corpo, deveria estar atrelado a uma moeda de troca, seja ela por meio de benefícios financeiros, de liberdade penal ou um lugarzinho no reino dos céus?

Quando o senador usa o argumento para sustentar a redução do tempo de pena, porque o sistema carcerário brasileiro é falho e não ressocializa ninguém e que custa caro aos cofres públicos, ele vira as costas para boa parte do próprio sentido de sua função policial que o levou aos holofotes midiáticos e, por consequência, aos bancos do Congresso Nacional. Sempre me pareceu que “botar na cadeia” os fora da lei fosse um de seus maiores aguilhões eleitorais.

Pois bem, de acordo com uma pesquisa das Nações Unidas com a União Interparlamentar (UIP), divulgada pela BBC News Brasil em 2019, Valentim faz parte do time dos parlamentares cujo mandato é sustentado pelo povo brasileiro e que custa, em média, US$ 7,4 milhões de dólares por ano. São regalias distribuídas em salários acima de 30 mil reais, 60 dias de férias por ano, auxílio moradia, assessores, veículos, celulares, dentre outros, que ajudam a drenar os cofres públicos em bilhões de reais por ano.

De acordo com essa mesma pesquisa o parlamento brasileiro no Congresso Nacional, composto pelos 81 senadores e 513 deputados federais é o segundo mais caro do mundo e seu custo seria o suficiente para pagar um ano de estudo de mais de 10 mil alunos do Ensino Médio em todo o país.

Então fica a dica: que os parlamentares criem uma lei que diminua drasticamente, se não em pelo menos 25%, os seus gastos pagos com o dinheiro do contribuinte, para que o país possa investir mais em educação e em outros direitos básicos como saúde, transporte, moradia, alimentação, emprego para seu povo. Dessa forma, talvez tivéssemos menos chances de superlotar o sistema carcerário ou de eleger parlamentares oportunistas, gastadores do erário, que se valem tão somente do senso comum para propor leis antiéticas.

Clique para ajudar a Agência Saiba Mais Clique para ajudar a Agência Saiba Mais
Previous ArticleNext Article
Jornalista e psicanalista