OPINIÃO

Se for mulher, não beba!

 Nesta terça-feira, 1º de agosto, por unanimidade dos votos, o STF declarou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra” em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. Essa aberração jurídica  era fartamente utilizada no Brasil em aassassinatos e violência contra mulheres para justificar o comportamento do acusado com o absurdo argumento que era aceitável quando a “conduta da vítima supostamente ferisse a honra do agressor”.

Em um país com índices assustadores de feminicídio, a decisão é para ser comemorada. Porém na mesma terça dia 1º, tomamos conhecimento de uma história pavorosa que envolve um combo completo de machismo, misoginia, irresponsabilidade, canalhice, corporativismo masculino e por fim, violência e estupro.

Segundo a Polícia Militar, no sábado, dia 29, uma jovem de 22 anos estava no show do cantor Thiaguinho, no estádio Mineirão, em Belo Horizonte. Como ficou embriagada, um amigo pediu um motorista de aplicativo (99) e mandou a localização para o irmão da moça. O motorista ao chegar ao local não conseguiu que ninguém abrisse a porta (o irmão estava dormindo e não acompanhou o trajeto) e a deixou desacordada na porta do prédio em que morava por volta das 3h da manhã. Minutos depois, um homem, de 47 anos, vestindo uma bermuda jeans e uma blusa preta, a encontrou e carregou no ombro, como mostram imagens de uma câmera de segurança, por quase 3 km, até um campo vazio, local que ela foi encontrada horas depois nua e ferida, onde a estuprou.

Neste show de horrores e descasos, todos em uma parcela em alguma medida na contribuição do crime. O amigo que, mesmo que bem intencionado, colocou a amiga inconsciente em um veículo estranho. O irmão desinteressado do paradeiro da irmã mesmo sabendo que ela estava desacordada e em um carro estranho. O motorista que diante do problema (uma passageira desacordada de madrugada e ninguém que abrisse a porta) toma a pior decisão possível: deixá-la do lado de fora de uma portaria de prédio (quando poderia gritar para que alguém abrisse, acionar as autoridades, comunicar o fato a quem pediu o veículo, levá-la para o hospital, talvez a decisão mais sensata). Até que chega o que vê uma mulher desacordada e a carrega  – como um objeto, o que certamente é como ele a viu – por três quilômetros para estuprá-la. Acompanhando esse horror pelo twitter reparei que muitas mulheres registraram que dos envolvidos na tragédia, todos são homens. “Nem todos os homens, mas sempre um homem. Ou vários”. escreveu uma jornalista.

Contudo, no supremo tribunal das redes sociais houve quem, como é de hábito no Brasil e foi estimulado pelo bolsonarismo que governou o país por quatro anos, culpou a vítima. Com os argumentos toscos e óbvios de sempre. “Mas também, ela ficou embriagada, se arriscou”. “Mulher bebendo demais dá nisso”. “Desacordada de madrugada na rua, queria o quê?” entre outros bem piores que nem vou reproduzir aqui. Não parou por aí. Em vários portais e passagens muitos homens, sempre ávidos em contestar qualquer tipo de “feminismo” e direitos básicos das mulheres insistiram que “isso também poderia ter acontecido com um homem”.

A resposta é: não! Não aconteceria com um homem. Parafraseando e subvertendo a letra de Chico César, sou homem, eu sei!

Primeiro porque dificilmente os amigos colocariam um amigo homem desacordado no carro e se sim, com muitas recomendações (e advertências) ao motorista, embora a regra masculina indique que se instale o amigo inconsciente num lugar razoavelmente seguro e à vida de alguém da turma até todos irem embora.

Segundo que com um homem desacordado jogado no carro talvez o irmão ficasse acordado nem que fosse “para aquele filho da puta não me acordar gritando nem dando piti na portaria caso tenha esquecido a chave”, como é de praxe pensar.

Terceiro que um motorista de aplicativo dificilmente “desovaria” um outro homem na calçada da portaria de um prédio de madrugada. Ele iria tentar acordar o “parça” ou o “doutor”, e, não conseguindo, tentaria acordar alguém no prédio para subir com o “amigo” ou “barão”.

Quatro: Um homem desacordado vindo de uma farra numa calçada ao ser visto por outro homem não seria estuprado. Ponto. Poderia ser furtado, levar um chute, uma cusparada, mas jamais ser colocado no ombro como um pacote e ser levado até um terreno baldio para ser violentado. Nunca. Jamais. Dizer o contrário com base em um fato isolado que porventura possa ter acontecido algumas vezes (em contrapartida com uma violência registrada diariamente, contra as mulheres) é mais que desonestidade intelectual e má-fé, é optar por defender o machismo estrutural.

Em geral, homens defendem e protegem homens quando estes estão bêbados ou desacordados. Não se trata de teoria e sim de experiência própria. Quantas vezes não dormi no uber e acordei com o motorista batendo suavemente no meu braço: “Chegamos, professor”. Quantos táxis não peguei em tempos idos em Rio e São Paulo, saindo de boate de madrugada e os motoristas abriram a porta para me ajudar a sair do carro? Nunca cheguei nem perto de ser furtado ou agredido quando desacordado em veículo alheio, final de show, boate ou bar, imaginemos então ser estuprado! Sempre fui salvo e me senti seguro com o corporativismo masculino. Que existe, é um fato, embora os próprios homens não gostam de falar sobre o assunto, como se para manter a mística (ou fingir que ele não existe).

Um homem na mesma situação da moça de Belo Horizonte, ainda que mais bêbado, ainda que drogado, ainda que vomitado o carro do motorista, ainda que gritando, dando escândalo, ameaçando os outros, não teria o menor risco de sofrer o que a mulher sofreu.

O pacote de descasos e abusos (da negligencia afetiva  até a violência sexual) somada aos comentários em redes sociais e portais parecem dar o recado: mulher não pode ficar bêbada, ou terá de aguentar as “consequências”. Na verdade, o recado é mais agudo: mulher não pode sequer beber, afinal “mulher bêbada é feio”, “mulher embriagada está pedindo” e bebida é coisa de homem mesmo. Mulher tem que ser bela, recatada e do lar mesmo, e pronto.

Se for mulher, não beba. Se beber, não se embriague nem fique desacordada. Talvez você não seja feia e mereça ser estuprada, parafraseando e subvertendo o genocida.

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