OPINIÃO

A sociedade sob vigilância

A editora Boitempo publicou em 2018 uma coletânea intitulada Tecnopolíticas da vigilância – Perspectivas da margem (organizada por Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Marta Kanashiro, Luciana Guilhon e Lucas Melgaço). O livro foi resultado de pesquisas feito por integrantes da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), criada em 2009 e que tem como objetivo principal “ser um meio de intercâmbio entre pesquisadores, ativistas e artistas latino-americanos interessados ​​nas conexões entre vigilância, tecnologia e sociedade”.

A criação da Rede foi uma iniciativa importante porque, existe hoje “uma massiva presença de tecnologias de vigilância e monitoramento de dados pessoais (…) que não vem sendo acompanhada, com a mesma intensidade, seja por debates públicos e movimentos sociais, seja por pesquisas acadêmicas e legislação adequada”. (http://lavits.org/?lang=pt).

O livro analisa o desenvolvimento de novas formas de vigilância, como a captação, processamento e armazenamento de dados que levam a novas formas de vigiar (e ser vigiado), com o uso de câmeras, rastreamento de compras, acessos à internet, das redes sociais etc., enfim, uma ampla e sofisticada teia de vigilância que servem não apenas para ofertas e vendas de produtos direcionados a determinados públicos alvos, como a possibilidade de vigilância e controle. E o mais grave: terminam sendo banalizadas, naturalizadas, sem que haja uma resistência organizada especialmente por parte de suas vítimas.

Um dos artigos do livro é Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação de Shoshana Zuboff que, como se diz na apresentação “trata da natureza e dos efeitos de quatro práticas derivadas da mediação por computador no capitalismo de vigilância. São elas a de extração e análise de dados, a de estabelecer novas formas de contrato, que permitem um melhor monitoramento, a de personalização e customização e, por fim, a de fazer experimentos contínuos”.

Para Zuboff essas práticas expressam o que ela chama de Big Other, que é uma nova configuração do poder “que prediz e modula comportamentos, impondo desafios às normas democráticas”.

O sociólogo polonês Zigmunt Bauman (1925-2017), é autor de vasta obra, entre elas o livro Vigilância líquida (Editora Zahar, 2013). Nele Bauman analisa o significado do que chama de novas formas de controle para a produção da ordem na modernidade líquida. O livro é dividido em sete capítulos e entre eles o que trata da vigilância líquida como pós-pan-óptico e afirma que se a tarefa principal do panóptico tal como formulado pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832) embora “esteja vivo e bem de saúde” e “armado de músculos” (eletronicamente reforçados e “ciborguiados”) e ainda hoje tão poderosos que ele “não conseguiria nem tentaria imaginá-lo”, no entanto na modernidade líquida “claramente deixou de ser o padrão ou a estratégia mais comumente praticado”. Para ele “O pan-óptico foi tirado de seu lugar e confirmado às partes ‘não-administráveis’ da sociedade, como prisões, campos de confinamento, clínica psiquiátricas e outras instituições totais no sentido criado por Goffman” (a referência é o escritor e cientista social canadense Erving Goffman (1922-1982) que foi presidente da American Sociological Association e autor, entre outros livros, de Manicômios, Prisões e Conventos publicado no Brasil pela Editora Perspectiva (SP) em 1961.

Em relação ao modelo do panóptico de Benthan foi publicado no Brasil em 2008 pela editora Autêntica, o Panóptico (primeira tradução para o português) e no qual ele formula o que ficou conhecido como o projeto do Panóptico. Nesse modelo era fundamental disciplinar “mantendo uma ameaça constante e real de punição e a estratégia era fazer os súditos acreditarem que em nenhum momento poderiam se esconder do ‘olhar onipresente’ dos seus superiores e que não era possível nenhum desvio de comportamento, por mais secreto que fosse e se houvesse, não poderia ficar sem punição”, ou seja, o poder disciplinar condicionava o comportamento humano por meio de instituições sociais, mas em espaços fechados (escolas, quartéis, manicômios, prisões etc.) a serviço dos interesses dos detentores do poder.

No entanto, para Bauman, na sociedade líquida moderna a possibilidade de armazenagem de informações sobre as pessoas cresceu exponencialmente e passaram a fazer parte de gigantescos sistemas de dados que podem ser definidos como verdadeiros “superpanópticos”, que é diferente do modelo anterior (circunscrito a espaços fechados). Agora há vigilância irrestrita, de câmaras em espaços públicos, sistemas sofisticados de vídeo-vigilância, mecanismos de rastreamento de dados na Internet e em redes de telefones celulares, documentos biométricos de identificação, entre muitos exemplos de tecnologias que possibilitam a coleta, armazenamento, cruzamento de informações etc.

É possível afirmar que há hoje uma cultura da vigilância no sentido utilizado por David Lyon no artigo Cultura da vigilância: envolvimento exposição e ética na modernidade digital (Tecnopolíticas da vigilância, p.151-180) que é facilitada pela hiperexposição das pessoas especialmente nas redes sociais, quando fornecem espontaneamente seus dados, preferências etc., ou seja, não bastassem as iniciativas governamentais que visam dispor de mais dados das pessoas e, portanto maior possibilidade de controle, os vigiados também fornecem diária e voluntariamente seus dados que são armazenados e que servem de instrumentos de vigilância deles mesmos e assim, as barreiras físicas, antes limitadas (espaços fechados) que eram as fronteiras do panóptico se ampliam.

Um dos grandes desafios hoje em relação ao desenvolvimento dessas novas formas de vigilância (e controle) é: o que fazer? Em relação à internet e o direito à privacidade, no livro Big Tech – a ascensão dos dados e a morte da política (Editora Ubu, 2018), Evgeny Morozov questiona as formas pelas quais os dados pessoais são utilizados, não apenas pelos governos, mas especialmente por empresas privadas que invadem a privacidade e ameaçam à própria democracia.

Nesse sentido, há iniciativas importantes como a Coalizão Dinâmica para Direitos e Princípios da Internet (Internet Rights and Principles Dynamic Coalition – IRPC) que é uma “rede internacional aberta de pessoas e organizações que trabalham para defender os direitos humanos no ambiente online e em todo o âmbito da elaboração de políticas para a internet”. A rede elaborou e divulgou uma Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet. São dez direitos e princípios e entre eles, sobre a privacidade e proteção de dados. Diz: “Todos os indivíduos têm o direito à privacidade online, incluindo o direito de não ser vigiado, o direito de usar criptografia e o direito ao anonimato online. Todos os indivíduos têm também o direito à proteção de dados, incluindo o controle sobre coleta, retenção, tratamento, eliminação e divulgação dedados pessoais”. (Os 10 Direitos e Princípios da internet da Coalizão IRP estão disponíveis para download em 25 idiomas em http://internetrightsandprinciples.org/site/campaign).

Segundo o documento a “Internet oferece oportunidades sem precedentes para a efetivação dos direitos humanos, e desempenha um papel cada vez mais importante nas nossas vidas”. Nesse sentido “é essencial que todos os agentes, tanto públicos como privados, respeitem e protejam os direitos humanos na Internet”. “Também devem ser tomadas medidas para garantir que a Internet funcione e evolua de modo que os direitos humanos sejam defendidos”.

A questão é: como garantir o respeito e o direito à privacidade e não apenas na internet, como o uso que se pode fazer com os mega dados que tanto o governo pode ter das pessoas (por diferentes mecanismos) como grandes empresas privadas, como o Google e outras? Como saber com que fins serão usados os dados das pessoas? Michel Foucault em Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1975), publicado no Brasil pela Editora Vozes (Vigiar e punir: história da violência nas prisões) se refere a uma rede complexa de relações de poder que controla os indivíduos por meio da vigilância e que depende da sua invisibilidade (e da visibilidade dos sujeitos) que devem saber que estão sendo vigiados e nesse sentido a vigilância substitui a violência. O perigo de governos autoritários é exatamente esse: podem não apenas vigiar as pessoas, como se pretende, mas também punir os dissidentes, e com violência, se for preciso. E por outro lado, mesmo em governos democráticos, empresas privadas continuam a deter enorme base de dados das pessoas e usá-los em função de seus interesses políticos e especialmente comerciais (compartilhamento pelas empresas de tecnologia para anunciantes etc.).

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